Mestres da Poesia - Mário de Andrade

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49 A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
50 Você perceberá com facilidade que si na minha poesia a gramática às vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.
51 Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
52 Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras freqüentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
53 Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun'Alvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes.
54 Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre de arte.
55 O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. "E tu che sé costí, anima viva, Partiti da cotesti che son morti”.
56 Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura de originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.
57 Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: "Não entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
58 Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meu amigos, o anseio do farol. Si fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o “Farolismo". Nosso desejo: alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite meio-termo. Si gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas: naufrágios por evitar.
59 Canto da minha maneira. Que me importa si me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário alaúde que construi, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a principio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum, alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos. Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d'óculos, farei que as próprias pedras se reunam em muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
60 Minha mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de Junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1º volume das Promenades Littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João Cocteau, La Noce Massacrée.
61 Mas todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Paulicéia Desvairada não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei Eu vivo!
62 Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem n.° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada. Sofrer: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.
63 E está acabada a escola poética. “Desvairismo”.
64 Próximo livro fundarei outra.
65 E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
66 Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.
Inspiração
"Onde ate na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de crudelíssimos inverno”
Fr. Luis de Sousa
São Paulo! comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Trajes de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
O trovador
Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!
Os Cortejos
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bon giorno, caro".
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das ausências!
Paulicéia — a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Estes homens de São Paulo,
todos iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos, uns macacos.
A escalada
(Maçonariamente.)
— Alcantilações!... Ladeiras sem conto!...
Estas cruzes, estas crucificações da honra!...
— Não há ponto final no morro das ambições.
As bebedeiras do vinho dos aplaudires...
Champanhações... Cospe os fardos!
(São Paulo é trono.) — E as imensidões das escadarias!...
— Queres te assentar no píncaro mais alto? Catedral?...
— Estas cadeias da virtude!.;.
— Tripinga-te! (Os empurrões dos braços em segredo.)
Principiarás escravo, irás a Chico-Rei!
(Há fita de série no Colombo,
O Empurrão na Escuridão. Film nacional.)
— Adeus lírios de Cubatão para os que andam sozinhos!
(Sono tré tustune per i ragazzini.)
— Estes mil quilos da crença!...
— Tripinga-te. Alcançarás o sólio e o sol sonante!
Cospe os fardos! Cospe os fardos!
Vê que facilidade as tais asas?
(Toca a banda do Fieramosca: Pa, pa, pa, pum!
Toca a banda da polícia: ta, ra, ta, tchim!)
És rei! Olha o rei nu!
Que é dos teus fardos, Hermes Pança?!
— Deixei-os lá nas margens das escadarias,
Onde nas violetas corria o rio dos olhos de minha mãe.
— Sossega. És rico, és grandíssimo, és monarca!
Alguém agora t'os virá trazer.
(E ei-lo na curul do vesgo Olho-na-Treva.)
Rua de São Bento
Triângulo.
Há navios de vela para os meus naufrágios!
E os cantares da uiara rua de São Bento...
Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas, as minhas delícias das asfixias da alma!
Há leilão. Há feira de carnes brancas. Pobres arrozais! Pobres brisas sem pelúcias lisas a alisar!
A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...
Não tenho navios de vela para mais naufrágios! Faltam-me as forças! Falta-me o ar!
Mas qual! Não há sequer um porto morto!
“Can you dance the tarantella” — “Ach! Ya”.
São as califómias duma vida milionária
numa cidade arlequinal...
O Clube Comercial... A Padaria Espiritual...
Mas a desilusão dos sombrais amorosos
põe majoration temporaire, 100% nt!...
Minha Loucura, acalma-te!
Veste o water-proof dos tambéns!
Nem chegarás tão cedo
à fábrica de tecidos dos teus êxtases:
telefone: Além, 3991...
Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,
vê, lá nos muito-ao-longes do horizonte,
a sua chaminé de céu azul!
O rebanho
Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Sairem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu estado amado!...
Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidar dos táxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro...
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num aceso em meus aplausos
Aos heróis do meu estado amado!...
E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhes os cornos, descem-lhes barbinhas...
E vi os chapéus altos do meu estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperança, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do Palácio do senhor presidente...
Oh! minhas alucinações!
Tietê
Era uma vez um rio...Porém os Borbas-Gatos dos uitra-nacionais esperiamente! Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmoas monções da ambição...E as gigânteas vitórias!As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!Foram-se os ouros... E o hoje das turmalinas!... — Nadador! Vamos partir pela via dum Mato-Grosso?— Io! Mai!... (Mais dez braçadas. Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)Vado a pranzare con la Ruth.
Paisagem n.° 1
Minha Londres das neblinas finas...
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neves de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
Parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
Nas mãos dum espanhol. Arlequinal...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.
Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
Um tralalá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
Para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
Dialoga um lamento com o vento...
Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
Dá uma vontade de sorrir!
E sigo. E vou sentindo,
À inquieta alacridade da invernia,
Como um gosto de lágrimas na boca...
Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangues de alguns milréis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o Printemps com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
Sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a doisl Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos.
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Tristura
"Une rose dans les ténèbres” Mallarmé
Profundo. Imundo meu coração...
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a avenida São João...
E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guisos nos meus interiores arlequinais!...
Paulicéia, minha noiva... Há matrimônios assim...
Ninguém os assistirá nos jamais!
As permanências de ser um na febre!
Nunca nos encontramos...
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenonville...
E tivemos uma filha, uma só...
Batismos do sr. cura Bruma;
água-benta das garoas monótonas...
Registei-a no cartório da Consolação...
Chamei-a Solitude das Plebes...
Pobres cabelos cortados da nossa monja!
Domingo
Missas de chegar tarde, em rendas,
e dos olhares acrobáticos...
Tantos telégrafos sem fio! .
Santa Cecília regorgita de corpos lavados
e de sacrilégios picturais...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no "Confiteor"... Contrastar!
— Futilidade, civilização...
Hoje quem joga?... O Paulistano.
Para o Jardim América das rosas e dos ponta-pés!
Friedenreich fez goal! Corner! Que juiz!
Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô...
E o meu xará maravilhoso!...
— Futilidade, civilização...
Mornamente em gasolinas... Trinta e cinco contos!
Tens dez milréis? Vamos ao corso...
E filar cigarros a quinzena inteira...
Ir ao corso é lei. Viste Marília?
E Filis? Que vestido: pele só!
Automóveis fechados... Figuras imóveis...
O bocejo do luxo... Enterro.
E também as famílias dominicais por atacado,
entre os convenientes perenemente...
— Futilidade, civilização.
Central. Drama de adultério.
A Bertini arranca os cabelos e morre.
Fugas... Tiros... Tom Mix!
Amanhã fita alemã... de beiços...
As meninas mordem os beiços pensando em fita alemã...
As romas de Petrônio...
E o leito virginal... Tudo azul e branco!
Descansar... Os anjos... Imaculado!
As meninas sonham masculinidades...
Futilidade, civilização.
O domador
Alturas da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
Sob o arlequinal do céu ouro-rosa-verde...
As sujidades implexas do urbanismo.
Filets de manuelino. Calvícies de Pensilvânia.
Gritos de goticismo.
Na frente o tram da irrigação,
Onde um Sol bruxo se dispersa
Num triunfo persa de esmeraldas, topázios e rubis...
Lânguidos boticellis a ler Henry Bordeaux
Nas clausuras sem dragões dos torreões...
Mário, paga os duzentos réis.
São cinco no banco: um branco,
Um noite, um ouro,
Um cinzento de tísica e Mário...
Solicitudes! Solicitudes!
Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens
Esse espetáculo encantado da Avenida!
Revivei, oh gaúchos Paulistas ancestremente!
E oh cavalos de cólera sangüínea!
Laranja da China, laranja da China, laranja da China!
Abacate, cambucá e tangerina!
Guardate! Aos aplausos do esfusiante clown.
Heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,
Passa galhardo um filho de imigrante,
Louramente domando um automóvel!
Anhangabaú
Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora...
Oh larguezas dos meus itinerários...
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades...
O carvalho votivo escondido nos orgulhos
do bicho de mármore parido no Salon...
Prurido de estesias perfumando em rosais
o esqueleto trêmulo do morcego...
Nada de poesia, nada de alegrias!...
E o contraste boçal do lavrador
que sem amor afia a foice...
Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,
onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
“Meu pai foi rei!
— Foi. — Não foi. — Foi. — Não foi."
Onde as tuas bananeiras?
Onde o teu rio frio encanecido pelos nevoeiros,
contando histórias aos sacis?...
Meu querido palimpsesto sem valor!
Crônica em mau latim
cobrindo uma écloga que não seja de Virgílio!...
A caçada
A bruma neva... Clamor de vitórias e dolos...
Monte São Bernardo sem cães para os alvíssimos!
Cataclismos de heroísmos... O vento gela...
Os cinismos plantando o estandarte;
enviando para todo o universo
novas cartas-de-Vaz-Caminha!...
Os Abéis quase todos muito ruins
a escalar, em lama, a glória...
Cospe os fardos!
Mas sobre a turba adejam os cartazes de Papel e Tinta
como grandes mariposas de sonho queimando-se na luz...
E o maxixe do crime puladinho
na eternização dos três dias... Tripudiares gaios!...
Roubar... Vencer... Viver os respeitosamente, no cre-
[púsculo...
A velhice e a riqueza têm as mesmas cãs.
A engrenagem trepida... A bruma neva...
Uma síncope: a sereia da polícia
que vai prender um bêbedo no Piques...
Não há mais lugares no boa-vista triangular.
Formigueiro onde todos se mordem e devoram...
O vento gela... Fermentação de ódios egoísmos
para a caninha-do-O' dos progredires...
Viva virgem vaga desamparada...
Malfadada! Em breve não será mais virgem
nem desamparada!
Terá o amparo de todos os desamparos!
Tossem: O Diário! A Platea...
Lívidos doze-anos por um tostão
Também quero ler o aniversário dos reis...
Honra ao mérito! Os virtusosos hão-de sempre ser louvados
e retratificados...
Mais um crime na Moóca!
Os jornais estampam as aparências
dos grandes que fazem anos, dos criminosos que fazem
[danos...
Os quarenta-graus das riquezas! O vento gela...
Abandonos! Ideais pálidos!
Perdidos os poetas, os moços, os loucos!
Nada de asas! nada de poesia! nada de alegria!
A bruma neva... Arlequinal!
Mas viva o Ideal! God save the poetry!
— Abade Liszt da minha filha monja,
na Cadillac mansa e glauca da ilusão.
passa o Oswald de Andrade mariscando gênios entre a multidão!...
Noturno
Luzes do Cambuci pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
Gingam os bondes como um fogo de artifício,
Sapateando nos trilhos,
Cuspindo um orifício na treva cor de cal...
Num perfume de heliotrópios e de poças
Gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestã;
E traz olheiras que escurecem almas...
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nos oscilantes de Ribeirão Preto...
— Batat’ assat'ô furnn!...
Luzes do Cambuci pelas noites de crime!...
Calor... E as nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
Um mulato cor de ouro,
Com cabeleira feita de alianças polidas...
Violão. "Quando eu morrer..." Um cheiro pesado de
[baunilhas
Oscila, tomba e rola no chão...
Ondula no ar a nostalgia das Baías...
E os bondes passam como um fogo de artificio,
Sapateando nos trilhos,
Ferindo um orifício na treva cor de cal...
— Batat' assat’ô furnn!...
Calor!... Os diabos andam no ar
Corpos de nuas carregando...
As lassitudes dos sempres imprevistos!
E as almas acordando às mãos dos enlaçados!
Idílios sob os plátanos!...
E o ciúme universal às fanfarras gloriosas
De saias cor-de-rosa e gravatas cor-de-rosa!...
Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas
Para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguém, ninguém, ninguém se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
Enquanto as travessas do Cambuci nos livres
Da liberdade dos lábios entreabertos!...
Arlequinal! Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
O estelário delira em carnagens de luz,
E meu céu é todo um rojão de lágrimas!...
E os bondes riscam como um fogo de artifício,
Sapateando nos trilhos,
Jorrando um orifício na treva cor de cal...
— Batat' assat’ô furnn!...
Paisagem nº 2
Escuridão dum meio-dia de invernia...
Marasmos... Estremeções... Brancos...
O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!
As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do polo
que o gelo parou no frio...
Lá para as bandas da Ipiranga as oficinas tossem...
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos de Paulicéia são como enterros de virgem...
Italianinha, toma al tuo paese!
Lembras-te? As barcarolas dos céus azuis nas águas
verdes...
Verde — cor dos olhos dos loucos!
As cascatas das violetas para os lagos...
Primaveral — cor dos olhos dos loucos!
Deus recortou a alma de Paulicéia
num cor de cinza sem odor...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!...
Mas os homens passam sonambulando...
E rodando num bando nefário,
vestidas de eletricidade e gasolina,
as doenças jocotoam em redor.
Grande função ao ar livre!
Bailado de Cocteau com os barulhadores de Russolo!
Opus 1921
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses da ilusão...
Mas o Nijinsky sou eu!
E vem a Morte, minha Karsavina!
Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança,
a rir, a rir dos nossos desiguais!