7 melhores contos de Eça de Queirós

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A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candeeiro de azeite na mão. Macário achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mão.
— Suba - disse o tio.
Macário ia calado, cosido com o corrimão.
Quando chegou ao quarto, o tio Francisco pousou o candeeiro sobre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.
Macário estava calado, anediando a barba.
— Que quer? - gritou-lhe o tio.
— Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo Verde.
— Boa viagem.
E o tio Francisco, voltando-lhe as costas, foi rufar na vidraça.
Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair.
— Onde vai, seu estúpido? - gritou-lhe o tio.
— Vou-me.
— Sente-se ali!
E o tio Francisco continuou, com grandes passadas pelo quarto:
— O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz o favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na fatura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. E meta na minha conta. A cama lá está feita.
Macário, estonteado, radioso, com as lágrimas nos olhos, queria abraçá-lo.
— Bem, bem. Adeus!
Macário ia sair.
— Oh! Burro, pois quer-se ir desta sua casa?
E, indo a um pequeno armário, trouxe geléia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga do Porto e biscoitos.
— Coma!
E sentando-se ao pé dele, e tornando a chamar-lhe de estúpido, tinha uma lágrima a correr-lhe pelo engelhado da pele.
De sorte que o casamento foi decidido para dali a um mês. E Luísa começou a tratar do seu enxoval.
Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.
Via o fim da sua vida preenchido, completo, feliz. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andando a acompanhá-la, em compras, pelas lojas, ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente. A mãe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia embaixo, no mesmo prédio, na loja.
O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso, consolador.
— Que bonito dia! - disse Macário.
E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.
— Está! - disse ela. - Mas podem reparar; nós sós...
— Deixa, está tão bom...
— Não, não.
E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto.
Macário disse-lhe:
— Queria ver anéis.
— Com pedras - disse Luísa - e o mais bonito.
— Sim, com pedras - disse Macário. - Ametista, granada. Enfim, o melhor.
E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus, os anéis, as finas alianças frágeis como o amor, e toda a cintilação da pesada ourivesaria.
— Vê, Luísa - disse Macário.
O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando-os e deixando-os com as pontas dos dedos, ia-os correndo e dizendo:
— É feio... É pesado... É largo...
— Vê este - disse-lhe Macário.
Era um anel de pequenas pérolas.
— É bonito - respondeu ela. - É lindo!
— Deixa ver se serve - tornou Macário.
E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados.
— É muito largo - disse Macário. - Que pena!
— Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhã.
— Boa idéia - disse Macário - sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E estes brincos? - acrescentou, indo ao fim do balcão, a outra montra. - Estes brincos com uma concha?
— Dez moedas - disse o caixeiro.
E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.
Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando vagarosamente a mão pela cara.
— Bem - disse Macário, aproximando-se - então amanhã temos o anel pronto. A que horas?
O caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.
— A que horas?
— Ao meio-dia.
— Bem, adeus - disse Macário.
E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequeninas estavam escondidas num regalo branco.
— Perdão! - disse de repente o caixeiro.
Macário voltou-se.
— O senhor não pagou.
Macário olhou para ele gravemente.
— Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, pago amanhã.
— Perdão! - insistiu o caixeiro, mas o outro...
— Qual outro? - exclamou Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão.
— Essa senhora sabe - afirmou o caixeiro. - Essa senhora sabe.
Macário tirou a carteira lentamente.
— Perdão, se há uma conta antiga...
O caixeiro abriu o balcão, e com um aspecto resoluto:
— Nada, meu caro senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.
— Eu! - disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.
— Que é? Que está a dizer?
E Macário, pálido, com os dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colèricamente.
O caixeiro disse então:
— Essa senhora tirou dali um anel.
Macário ficou imóvel, encarando-o.
— Um anel com dois brilhantes - continuou o rapaz. - Vi perfeitamente.
O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente.
— Essa senhora não sei quem é. Mas tirou o anel. Tirou-o dali...
Macário, maquinalmente, agarrou-lhe o braço, e voltando-se para Luísa, com a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido:
— Luísa, diz...
Mas a voz cortou-se-lhe.
— Eu... - balbuciou ela, trêmula, assombrada, enfiada, decomposta.
E deixou cair o regalo ao chão.
Macário veio para ela, agarrou-lhe no pulso, fitando-a: e o seu aspecto era tão resoluto e tão imperioso, que ela meteu a mão no bolso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel:
— Não me faça mal! - suplicou, encolhendo-se toda.
Macário ficou com os braços caídos, o ar abstrato, os beiços brancos; mas de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro:
— Tem razão. Era distração... Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, senhor, evidentemente. Tem a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, este senhor embrulha-o. Quanto custa?
Abriu a carteira e pagou.
Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beiços com o lenço, deu o braço a Luísa, e dizendo ao caixeiro: desculpe, desculpe, levou-a, inerte, passiva, aterrada, semimorta.
Deram alguns passos na rua, que um largo sol iluminava intensamente; as seges cruzavam-se, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas passavam, conversando; os pregões subiam em gritos alegres; um cavaleiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.
Macário ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braço de Luísa passado no seu; e via-lhe a mão pendente, a sua linda mão de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amorosos: era a mão direita, e aquela mão era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciara, para esta noite, Palafoz em Saragoça.
De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixo:
— Vai-te.
— Ouve!... rogou ela, com a cabeça toda inclinada.
— Vai-te. - E com a voz abafada e terrível: - Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.
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