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Aos dezasseis anos, Fernanda conheceu um rapaz em Lisboa. Chamava-se Armando, era um sujeito franzino, de aparência singela, mas cuja perseverança e vontade de triunfar na vida não passaram indiferentes aos olhos da rapariga. Embora se tenham conhecido na capital, ele também era natural da mesma aldeia de Fernanda, mas não viveu lá muito tempo. Durante a infância, Armando era um rapaz feliz. Andava na escola, não tinha problemas, uma vez que os seus pais trabalhavam e possuíam campos agrícolas. Na escola, planeava brincadeiras traquinas e habituais para alguém com a idade à flor da pele. A professora apertava-lhe as orelhas, dava-lhe com uma vara, punha-o de castigo, e ele, no seu jeito gingão, fugia pela janela. Aos 14 anos, depois do pai ter falecido, tudo mudou na vida de Armando. Embarcou na demanda de se aventurar por Lisboa, sem poder contar com ninguém que lhe estendesse a mão. Durante os anos de 1960, trabalhava entre catorze a quinze horas por dia numa leitaria. Aos poucos, conseguiu arranjar alojamento, um salário digno das suas funções e encontrou uma rapariga que tentava colmatar a falta do afeto que, naqueles últimos tempos, era como que uma antítese da alegria que vivenciou em rapaz.
Ela nutria aquela saudade platónica do sabor do figo maduro que lhe caía junto aos pés, da companhia solitária da Serra que nunca a abandonava, da serenidade dos animais que a viram crescer, e da aldeia que ansiava o seu regresso. Não obstante, Fernanda era um canário que tinha encontrado o seu poiso em Armando que, embora fosse um pouco mais velho do que ela, via naquela rapariga a mulher com que pretendia enfrentar momentos escuros como breu, derrubar barreiras, e construir a família que nunca chegou a consolidar. As estrelas tinham escrito que, entre tormentas e uns quantos desalentos, Fernanda e Armando haveriam de jurar amar-se e respeitar-se na saúde e na doença, tendo Deus como testemunha daquela união que prometia vigorar para sempre. Pelo esforço e suor de ambos, conseguiram conceber um ninho, um sítio que lhes permitia estruturar a família que tanto ambicionavam.
Pouco tempo depois de terem casado, Fernanda deu à luz uma menina. Aquela menina era a obra mais bonita que Deus tinha permitido a um mero mortal conceber, ofuscando inclusive a Pietà de Michelangelo. A cor dos seus olhos era como que o sangue que lhes corria pelas veias, e que os fazia recordar que a vida, mesmo em tempos de penumbra, era maravilhosa. Naquela altura, Armando conseguiu um emprego que não lhe roubava tantas horas da sua vida e, como bónus extra, tinha amealhado mais uns cobres para proporcionar uma vida desafogada a Fernanda e à sua pequena ninfa do Tejo.
Naquele ano de 1967, ocorreu também um grande cataclismo, as Cheias de Lisboa. Aquele fenómeno perturbou Fernanda de forma colossal, visto que, da janela de sua casa, via a destruição e a tragédia a bater à porta com uma veemência fora do comum. Felizmente, a tempestade passou, e, a pouco e pouco, a vida voltaria a tomar um rumo normal na capital, fazendo com que a vida de Fernanda e Armando retomasse a normalidade no quotidiano de outrora.
Posteriormente, no início da década de 1970, o casal teve mais um filho, mas, desta vez, era um rapaz. Desejado por ambos, e recebido com quanto amor e afeto seria possível demonstrar, a chegada do bebé vinha oferecer uma lufada de ar fresco revigorante à família, especialmente à menina, que sempre ambicionara ter um irmão com quem pudesse brincar e fazer tropelias. Naquela década, a vida de Fernanda e Armando mudou radicalmente, dado que testemunharam um dos acontecimentos mais preponderantes da sua geração. Começavam a surgir as primeiras manifestações contra o governo daquele período histórico. Efetivamente, os atos mais reacionários por parte dos estudantes começavam a ganhar força, ao passo que os trabalhadores e operários não almejavam quaisquer possibilidades de reivindicarem direitos ou de expressarem opiniões públicas. A Direção Geral de Segurança só foi extinta no 25 de Abril de 1974 e, até lá…”.
De repente, o rapaz interrompeu Luísa de relance: “Creio que o cerne da DGS ou da PIDE nunca saiu da nossa memória. Não reparas na selvajaria que corre pelas redes sociais? A dificuldade que temos em respeitar opiniões alheias? Se calhar, é tudo grão da mesma mó.”. Luísa rasgou um sorriso perante a intervenção, assentiu, e continuou a contar a história.
“Pois, talvez, mas onde é que eu ia? Ah, sim, as manifestações. Depois, com o 25 de Abril, tudo mudou, mas não foi logo de repente. Fernanda e Armando sentiam uma amálgama de emoções, entre receio e felicidade, mas não sabiam qual das duas iria perdurar. As pessoas não sabiam o que era viver em democracia. Surgiram excessos, e havia coisas às quais a população tinha direito, mas que não conseguia obter. Para o casal, aquele ambiente era uma surpresa inédita. Naquele 1º de Maio, Fernanda e Armando andavam de mão dada na rua, com os dois filhos, e, pela Alameda D. Afonso Henriques, iam ouvindo o povo gritar: “que raio de governo era aquele!”. O espanto era imperativo por, naquele período de incerteza, qualquer um poder proferir aquela frase sem ganhar um bilhete só de ida para Caxias. Respirava-se um ar de mudança. A pouco a pouco, parecia que o país se erguia como quando alguém se levanta da cama depois de um período de febre alta. Armando, que chegara a trabalhar dezasseis horas por dia para ter uma vida digna, via-se agora na posição de poder ter direito a proferir as suas convicções políticas e sociais.
Com o passar do tempo, os níveis de vida foram melhorando. Armando teve de arranjar um emprego novo, e Fernanda acompanhou o marido nessa nova aventura, uma vez que, naquela altura, era o usual a fazer-se, eram os costumes, as tradições, e essa realidade nenhuma revolução conseguia mudar. Os filhos foram crescendo, começaram a trilhar a vida de cada um, e o casal percebia que a sua missão tinha sido cumprida de forma coesa. Fernanda e Armando viram os triunfos sublimes dos filhos, viram um neto a nascer, e perceberam que, por muitas dificuldades e tristezas que tenham enfrentado ao longo do labirinto, nunca deixaram de lutar em prol da descoberta de um mundo melhor.”
“E é esta a minha história”, disse Luísa. “É a história de duas pessoas que nasceram no mesmo lugar, mas que tiveram de encontrar-se a vários quilómetros de distância para perceberem que iam ser uma dupla vencedora. Acima de tudo, é uma história que prova que, por mais que não queiramos estar sozinhos, a solução não tem de passar pela Helena que vive a um quarteirão de distância, mas sim pela Aurora ou pelo Artur que ainda não conhecemos”.
O rapaz vislumbrou a mãe, deu-lhe beijo na testa e, antes de abandonar o sofá, decidiu que também tinha algo a dizer.
“Sabes, também tenho uma história para te contar. Uma história sobre duas pessoas que tiveram um filho, mas é mais pequena do que a tua.
No dia seguinte, nenhum dos dois disse nada. Depois da discussão, recordavam com apreço, e sem mágoa ou rancor, o filho que tinha surgido em flor. Primordialmente, teria um nome extenso, contudo, a mãe preferia algo mais recatado e simples. Por conseguinte, o rapaz recebeu três nomes próprios. Não obstante, embora já conhecessem o nome do primogénito, idealizavam conhecer o seu percurso. E assim, desta feita, por intermédio do engenho e da arte, perguntaram a um sábio proveniente de uma terra distante se podia dizer-lhes como seria o filho adorado. Ofegante, porém, tímido, o sábio disse-lhes:
“O vosso filho terá a audácia de enfrentar a adversidade em tempos de tormenta, mas cometerá o pecado de nem sempre ser leal aos princípios incutidos por vós. Vai singrar no ofício que leva os outros a passar além da Taprobana, para que todas as culturas andem de mão dada. Entre os demais, vai denotar-se por uma certa ousadia ao pretender ocupar um lugar numa mesa de reis. Ambicionará conhecer a lua e o sol, mesmo que, durante algum tempo, os números possam ocultar o verdadeiro resultado da sua equação. Não tão confiante de que pode triunfar nas suas convicções, será um eufemismo alegar que nunca estarão lá para ele. O vosso filho terá orgulho em vós, e julgo poder afirmar que, entre vários avanços e recuos, o comboio vai chegar à estação que vos une pelo coração.”
A mãe e o rapaz abraçaram-se, e assim permaneceram, em ternura e compaixão, no amor que sentiam um pelo outro.
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