Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo

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Então V. S. ª dá-me licença para falar com toda a sinceridade?
— Eu o exijo.
— Pois, minha senhora, atendendo a tudo quanto ouvi, e principalmente a esses últimos incômodos, que tão amiúde sofre, e de que mais se queixa, como tonteiras, dores no ventre, calafrios, certas dificuldades, esse peso dos lombos etc., concluo, e todo o mundo médico concluirá comigo, que V. S. padece...
— Diga... não tenha medo.
— Hemorróidas.
D. Violante fez-se vermelha como um pimentão, horrível como a mais horrível das fúrias, encarou o estudante com despeito, e, fixando nele seus tristíssimos olhos furta-cores, perguntou:
— O que foi que disse, senhor?
— Hemorróidas, minha senhora.
Ela soltou uma risada sarcástica.
— V. S.ª quer que lhe prescreva o tratamento conveniente?...
— Menino, respondeu com mau humor, tome o meu conselho: outro ofício; o senhor não nasceu para médico.
— Sinto ter desmerecido o agrado de V. S.ª por tão insignificante motivo. Rogo-lhe que me desculpe, mas eu julguei dever dizer o que entendia.
Isto dizendo, o estudante ergueu-se; a velha já não fez o menor movimento para o demorar, e vendo-o deixá-la, disse em tom profético:
— Este não nasceu para a medicina!
Mas Augusto, afastando-se de d. Violante, dava graças ao poder de seu diagnóstico e augurava muito bem de seu futuro médico, pela grande vitória que acabava de alcançar.
Agora sim, disse ele com os seus botões, vou recuperar o tempo perdido; e procurava uma cadeira, cuja vizinhança lhe conviesse.
A digna hóspeda compreendeu perfeitamente os desejos do estudante, pois mostrando-lhe um lugar junto de sua neta, disse:
— Aquela menina lhe poderá divertir alguns instantes.
— Mas, minha avó, exclamou a menina com prontidão, até o dia de hoje ainda não me supus boneca.
Menina!...
Contudo, eu serei bem feliz se puder fazer com que o senhor... o senhor...
— Augusto, minha senhora...
— O sr. Augusto passe junto a mim momentos tão agradáveis, como lhe foram as horas que gozou ao pé da sra. d. Violante.
Augusto gostou da ironia, e já se dispunha a travar conversação com a menina travessa, quando Fabrício se chegou a eles, e disse a Augusto:
— Tu me deves dar uma palavra.
— Creio que não é preciso que seja imediatamente.
— Se a sra. d. Carolina o permitisse, eu estimaria falar-te já.
— Por mim não seja... disse a menina erguendo-se.
— Não, minha senhora, eu o ouvirei mais tarde, acudiu Augusto, querendo retê-la.
Nada... não quero que o sr. Fabrício me olhe com maus olhos... Além de que, eu devo ir apressar o jantar, pois li no seu rosto que a conversação que teve com a sra. d. Violante, quando mais não desse, ao menos produziu-lhe muito apetite... mesmo um apetite de... de...
— Acabe.
— De estudante.
E, mal o disse, a travessa moreninha correu para fora da sala.
Capítulo IV: Falta de condescendência
Fabrício acaba de cometer um grande erro, que para ele será de más conseqüências. Quem pede e quer ser servido, deve medir bem o tempo, o lugar e as circunstâncias, e Fabrício não soube conhecer que o tempo, o lugar e as circunstâncias lhe eram completamente desfavoráveis. Vai exigir que Augusto o ajude a forjar cruel cilada contra uma jovem de dezessete anos, cujo delito é ter sabido amar o ingrato com exagerado extremo. Ora, para conseguir semelhante torpeza, preciso seria que Fabrício aproveitasse uni momento de loucura, um desses instantes de capricho e de delírio cm que Augusto pensasse que ferir a fibra mais sensível e vibrante do coração da mulher, a fibra do amor, não é um crime, não é pelo menos, Louca e repreensível leviandade, e apenas perdoável e interessante divertimento de rapazes; e nessa hora não podia Augusto raciocinar tão indignamente. Ainda quando não houvesse nele muita generosidade, estava para desarmá-lo o poder indizível da inocência, o poderoso magnetismo de vinte olhos belos como o planeta do dia, a influência cativadora da formosura em botão, da beleza virgem ainda, de um anjo enfim, porque é símbolo de um anjo a virgindade de uma jovem bela.
Mas Fabrício olvidou tudo, e mal, sem dúvida, terá de sair de seu empenho com tantas contrariedades; o tempo não lhe é propício, porque Augusto começa a sentir todos os sintomas de apetite devorador. Ora, um rapaz, e principalmente um estudante com fome, aborrece-se de tudo, principalmente do que lhe cheira a maçada. O lugar não menos lhe era desfavorável, porque, diante de um ranchinho de belas moças, quem poderá tramar contra o sossego delas?... Então Augusto, que era dos tais que por semelhante povo, são como formiga por açúcar, macaco por banana, criança por campainha... e ele tinha razão! Por último, as circunstâncias também contrariavam Fabrício, pois a sra. d. Violante havia tido o poder de esgotar toda a elástica paciência do pobre estudante, que não acharia nem mais uma só dose homeopática desse tão necessário confortativo para despender com o novo macista.
Fabrício tomou, pois, o braço de Augusto e ambos saíram da sala, este com vivos sinais de impaciência, o primeiro com ares de quem ia tratar importante negócio.
A inocente d. Joaninha os acompanhou com os olhos e riu-se brandamente, encontrando os de Fabrício, que teve ainda bastante audácia para tingir um sorriso de gratidão.
Eles se dirigiram ao gabinete do lado direito da sala, o qual fora destinado para os homens; e entrando fechou Fabrício a porta sobre si, para se achar em toda liberdade. Enfim, estavam sos. Voltados um para o outro, guardavam alguns momentos de silêncio. Foi Augusto que teve de rompê-lo.
— Então, ficamos a jogar o siso?...
— Espero a tua resposta, disse Fabrício.
— Ainda não me perguntaste nada, respondeu o outro.
— A minha carta?...
— Eu a li... sim, tive a paciência de lê-la toda.
— E então?...
— Então o que, homem?...
— A resposta.
— Aquilo não tem resposta.
— Ora, deixa-te disso; vamos mangar com a moça.
— Tu estás doido, Fabrício.
— Por tua culpa, Augusto.
— Pois então cuidas que o amor de uma senhora deva ser a peteca com que se divirtam dois estudantes?...
— Quem é que te fala em peteca?... Pelo contrário, o que eu quero é desgrudar-me do fatal contrabando.
— Não! A pesar teu, deves respeitar e cultivar o nobre sentimento que te liga a d. Joaninha. Que se diria dó teu procedimento, se depois de trazeres uma moça toda cheia de amor e fé na tua constância, por espaço de três meses, a desprezasses sem a menor aparência de razão, sem a mais pequena desculpa?...
— Então tu, com o teu sistema de...
Eu desengano: previno a todas que as minhas paixões têm apenas horas de vida, e tu, como os outros, juras amor eterno.
— Estou desconhecendo-te, Augusto. Sempre te achei com juízo e bom conceito e agora temo muito que estejas com princípios de alienação mental! Explica-me, por quem és, que súbito acesso de moralidade é esse que tanto te perturba.
— Isto, Fabrício, chama-se inspiração dos bons costumes.
— Bravo! Bravo! Foi muito bem respondido, mas, palavra de honra que tenho dó de ti! Vejo que em matéria da natureza da de que tratamos estás tão atrasado como eu em fazer sonetos. Apesar de todo o teu romantismo, ou talvez principalmente por causa dele, não vês o que se passa a duas polegadas do nariz. Pois, meu amigo, quero te dizer: a teoria do amor do nosso tempo aplaude e aconselha o meu procedimento; tu verás que eu estou na regra, porque as moças têm ultimamente tomado por mote de todos os seus apaixonados extremos, ternos, afetos e gratos requebros, estes três infinitos de verbos: iscar, pescar e casar. Ora, bem vês que, para contrabalançar tão parlamentares e viciosas disposições, nós, os rapazes, não podíamos deixar de inscrever por divisa em nossos escudos os infinitos desses três outros verbos: fingir, rir e fugir. Portanto, segue-se que estou encadernado nos axiomas da ciência.
— Com efeito! ... Não te supunha tão adiantado!
— Pois que dúvida? Para viver-se vida boa e livre, é preciso andar com o olho aberto e o pé ligeiro. Então as tais sujeitinhas que, com a felicidade e indústria com que a aranha prende a mosca na teia, são capazes de tecer de repente, com os olhares, sorrisos, palavrinhas doces, suspiros a tempo, me deixes aproximando-se, zelos afetados e arrufos com sai e pimenta, uma armadilha tão emaranhada que, se o papagaio é tolo e não voa logo, mete por força o pé no laço e adeus minhas encomendas, fica de gaiola para todo o resto de seus dias... E, portanto, meu Augusto, deixa-te de insípidos escrúpulos e ajuda-me a sair dos apuros em que me vejo.
— Torno a dizer-te que estás doido, Fabrício, pois que me acreditas capaz de servir de instrumento para um enredo... uma verdadeira traição. Então, que pensas? Eu requestaria d. Joaninha, não é assim?... Tu a deixavas, fingindo ciúmes, e depois quem me livraria dos apertos em que necessariamente tinha de ficar?...
— Ora, isso não te custava cinco minutos de trabalho: tu... inconstante por índole e por sistema!
— Fabrício, deixa-te de asneiras; já que te meteste nisso, avante! Além de que, d. Joaninha é um peixão.
— Oh! Oh! Oh!... Uma desenxabida...
— Que blasfêmia!
— Além disso é impossível... Não posso suportar o peso: escrever quatro cartas por semana... Só o talento que é preciso para inventar asneiras e mentiras dezesseis vezes por mês! ... E depois, o Tobias...
— Puxa-lhe as orelhas.
— Como?... Se ele é a cria de d. Joaninha, o alfenim da casa, o São Benedito da família!
— Não sei, meu amigo, arranja-te como puderes.
— Lembra-te que foste a causa principal de tudo isso.
— Quem?... Eu?... Eu apenas te disse que não sabias o gosto que tinha o amor à moderna.
Pois bem, saí do meu elemento, fui experimentar a paixão romântica... aí a tem! ... A tal paixãzinha me esgotou já paciência, juízo e dinheiro. Não a quero mais.
— Tu sempre foste um papa-empadas.
— Sim, e há dois meses que não sei o que é cheiro delas. Anda, meu Augustozinho, ajuda-me!
— Não posso e não devo.
— Vê lá o que dizes! Tenho dito.
— Augusto!
— Agora digo mais que não quero.
— Olha que te hás de arrepender!
Esta é melhor! ... Pretendes meter-me medo?... Eu sou capaz de vingar-me.
— Desafio-te a isso.
— Desacredito-te na opinião das moças.
— E um meio de tornar-me objeto de suas atenções. Peço-te que o faças.
Descubro e analiso o teu sistema de iludir a todas. Tornar-me-ás interessante a seus olhos.
— Direi que és um bandoleiro.
— Melhor, elas farão por tornar-me constante.
— Mostrarei que a tua moral a respeito de amor é a pior possível. Ótimo! ... Elas se esforçarão por fazê-la boa.
— Hei de, nestes dois dias, atrapalhar-te continuamente.
— Bravo!... Não contava divertir-me tanto! Então tu teimas no teu propósito?...
— Pois, se é precisamente agora que estou vendo os bons resultados que ele me promete!
— Portanto... estes dois dias, guerra!
— Bravíssimo, meu Fabrício; guerra!
— Antecipo-te que o meu primeiro ataque terá lugar durante o jantar.
— Oh! Por milhares de razões, tomara eu que chegasse a hora dele!...
— Augusto, até o jantar!
— Fabrício, até o jantar!
Neste momento Filipe abriu a porta do gabinete e, dirigindo-se aos dois, disse:
— Vamos jantar.
Capítulo V: Jantar Conversado
Ao escutar aquele aviso animador que, repetido pela boca de Filipe, tinha chegado até o gabinete onde conversavam Augusto e Fabrício, raios de alegria brilhavam em todos os semblantes. Cada cavalheiro deu o braço a uma senhora e, par a par, se dirigiram para a sala de jantar. Eram, entre senhoras e homens, vinte e seis pessoas.
Coube a Augusto a glória de ficar entre d. Quinquina, que lhe dera a honra de aceitar seu braço direito, e uma jovem de quinze anos, cuja cintura se podia abraçar completamente com as mãos. Um velho alemão ficava à esquerda dela e, sem vaidade, podia Augusto afirmar que d. Clementina prestava mais atenção a ele que ao jagodes, que, também, a falar a verdade, por seu turno, mais se importava com o copo que com a moça.
D. Quinquina (como a chamam suas amigas) conversa sofrível e sentimentalmente: é meiga, terna, pudibunda, e mostra ser muito modesta. Seu moral é belo e lânguido como seu rosto; um apurado observador, por mais que contra ela se dispusesse, não passaria de classificá-la entre as sonsas. D. Clementina pertencia, decididamente, a outro gênero: o que ela é lhe estão dizendo dois olhos vivos e perspicazes e um sorriso que lhe está tão assíduo nos lábios, como o copo de vinho nos do alemão. D. Clementina é um epigrama interminável; não poupa a melhor de suas camaradas: sua vivacidade e espírito se empregam sempre em descobrir e patentear nas outras as melhores brechas, para abatê-las na opinião dos homens com quem pratica.
Durante as primeiras cobertas ela dissertou maravilhosamente acerca de suas companheiras. Maliciosa e picante, lançou sobre elas o ridículo, que manejava, e os sorrisos de Augusto, que com destreza desafiava. As únicas que lhe haviam escapado eram d. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito vizinha, e a irmã de Filipe, que estava defronte ou como é moda dizer — vis-à-vis.
Augusto quis provocar os tiros de d. Clementina contra aquela menina impertinente, que tão pouco lhe agradava.
— E que pensa V. S.ª desta jovem senhora que está defronte de nós? perguntou ele em voz baixa.
Quem?... A Moreninha?... respondeu ela no mesmo tom. Falo da irmã de Filipe, minha senhora.
— Sim... todos nós gostamos de chamá-la a Moreninha. Essa... Acabe d. Clementina, disse a irmã de Filipe que, fingindo antes não prestar atenção ao que conversavam os dois, acabava de fixar de repente na terrível cronista dois olhares penetrantes e irresistíveis.
Parecia que uma luta interessante ia ter lugar; as duas adversárias mostravam-se ambas fortes e decididas, porém d. Clementina para logo recuou; e, como querendo não passar por vencida, sorriu-se maliciosamente e, apontando para a Moreninha disse, afetando um acento gracejador:
— Ela é travessa como o beija-flor, inocente como uma boneca, faceira como o pavão, e curiosa como... uma mulher.
— Sim, tornou-lhe d. Carolina. Preciso é que os ouvidos estejam bem abertos e a atenção bem apurada, quando se está defronte de uma moça como d. Clementina, que sempre tem coisas tão engraçadas e tão inocentes para dizer! ... Oh! minha camarada, juro-lhe que ninguém lhe iguala na habilidade de compor um mapa.
— Mas... d. Carolina... você deu o cavaco?...
Oh! não, não... continuou a menina, com picante ironia; porém é fato que nenhuma de nós gosta de ser ofuscada com o esplendor de outra. Já basta de brilhar, d. Clementina; o sr. Augusto deve estar tão enfeitiçado com o seu espírito e talento, que decerto não poderá toda esta tarde e noite olhar para nós outras, sem compaixão ou desgosto; portanto, já basta... se não por si, ao menos por nós.
A cronista fez-se cor de nácar e a sua adversária, imitando-a na malícia do sorriso e no acento gracejador, prosseguiu ainda:
— Mas ninguém conclua daqui que, por ofuscada, perco o amor que tinha ao astro que me ofuscou. Bela rosa do jardim! Teus espinhos feriram a borboleta, mas nem por isso deixarás de ser beijada por ela!...
E assim dizendo, a Moreninha estendeu e apinhou os dedos de sua mão direita, fez estalar um beijo no centro do belo grupo que eles formaram e, enfim, executou com o braço um movimento, como se atirasse o beijo sobre d. Clementina.
Oh! disse Augusto consigo mesmo: a tal menina travessa não é tola como me pareceu ainda há pouco. E desde então começou o nosso estudante a demorar seus olhares naquele rosto que, com tanta injustiça, tachara de irregular e feio. Prevenido contra d. Carolina, por havê-la surpreendido fazendo-lhe uma careta, o tal sr. Augusto, com toda a empáfia de um semidoutor, decidiu magistralmente que a moça tinha todos os defeitos possíveis. Coitadinho! ... Espichou-se tão completamente, que agora mesmo já estava pensando com os seus botões: ela não será bonita!... porém feia?... isso é demais!
— Chegou muito tarde à ilha... balbuciou d. Quinquina, como quem desejava travar conversação com Augusto.
— Pensa deveras isso, minha senhora?!... respondeu este, pregando nela um olhar de quem está pedindo um sim.
— Penso... disse a moça enrubescendo.
— Pois é precisamente agora que eu reconheço ter chegado muito tarde ou pelo contrário, talvez cedo demais.
— Cedo demais?...
— Certamente: não se chegará sempre cedo demais onde se corre algum risco?
— Aqui, portanto...
— Neste lugar, portanto, continuou o estudante, voltando os olhos por todas as senhoras, e apontando depois para d. Quinquina; aqui, principalmente, floresce e brilha o prazer, mas perde-se também a liberdade de um mancebo!
Os dois foram interrompidos para corresponder a uma longa e interminável coleção de brindes que o alemão principiou a desenrolar, e com tanta freqüência e tão pouca fertilidade, que só a sra. d. Ana teve, por sua saúde, de vê-lo beber seis vezes.
Enfim, cedeu um pouco a tormenta, e d. Quinquina, que havia gostado do que lhe dissera o estudante, continuou:
— Não quis vir com os seus colegas?
— Eu gosto de andar só, minha senhora.
— Sempre é má e triste a solidão.
— Mas às vezes também a sociedade se torna insuportável... por exemplo, depois de amanhã...
— Depois de amanhã? repetiu ela, sorrindo-se; depois de amanhã o quê?
— Minha senhora, ouvidos que escutaram acordes, sons de harpa sonora, vibrada por ligeira mão de formosa donzela, doem-se de ouvir o toque inqualificável da viola desafinada da rude sabia.
Eu não o compreendo bem...
— Quem respirou o ar embalsamado dos jardins. o aroma das rosas, os eflúvios da angélica, incomoda-se, exaspera-se ao respirar logo depois a atmosfera grave e carregada de miasmas de um hospital.
— Ainda o não entendi.
— Pois juro, minha senhora, que desta vez me há de compreender perfeitamente. Digo que, vendo eu hoje dois olhos que por sua cor se assemelham a dois belos astros de luz, cintilando em céus do mais puro azul; que, escutando uma voz tão doce como serão as melodias dos anjos; que enfim, respirando junto de alguém, cujo bafo é um perfume de delícias, depois de amanhã preferirei não ver, não ouvir e não cheirar coisa alguma, a ver os olhos pardos e encovados ali do meu amigo Leopoldo, a ouvir a voz de taboca rachada do meu colega Filipe e a respirar a fumaça dos charutos de meu companheiro Fabrício.
—Ah!... exclamou outra vez inesperadamente d. Carolina, eu creio que d. Quinquina terá finalmente compreendido o que o sr. Augusto tanto se empenha em lhe explicar.
— Minha prima, atreveu-se a dizer a ingênua, modesta, medrosa e muito sonsa d. Quinquina; minha prima, você o teria compreendido no primeiro instante, não é assim?...
— Certamente, respondeu a mocinha, sem perturbar-se; o sr. Augusto, além de falar com habilidade e fogo, pôs em ação três sentidos; o que poderia também suceder, era que, como algumas costumam fazer, eu fingisse não compreendê-lo logo, para dar lugar a mais vivas finezas, até que ele de fatigado dissesse tudo, sem figuras e flores de eloqüência... Ora, isso quase que aconteceu, porque os olhos, os ouvidos e o nariz do sr. Augusto hão de estar certamente cansados de tão excessivo trabalho!
— Minha senhora!
Por desdita dele não houve ocasião de pôr em campo um outro sentido; o gosto ficou em inação, bem contra a sua vontade, não é assim, sr. Augusto?...
— Minha prima, todos olham para nós...
— A respeito do tato, não direi palavra, continuou a terrível Moreninha; porque se as mãos do sr. Augusto conservaram-se em justa posição, quem sabe os transes por que passariam os pés de minha prima?... Os srs. estão tão juntinhos, que com facilidade e sem risco se podem tocar por baixo da mesa.
— Menina! exclamou a sra. d. Ana, com acento de repreensão.
— Minha senhora, consinta que ela continue a gracejar, disse Augusto, meio aturdido. Além de me dar a honra de tomar-me por objeto de seus gracejos, dá-me também o prazer de apreciar e admirar seu espírito e agudeza.
— Agradecida! Muito agradecida! tornou o diabinho da menina, rindo-se com a melhor vontade. Eu cá não custo a compreendê-lo como minha prima; já sei o que querem de mim os seus elogios... Estou comprada, não falo mais.
Uma risada geral aplaudiu as últimas palavras de d. Carolina; não há nada mais natural; ela era a neta da dona da casa, além de ser moça e rica.
Começava então a servir-se a sobremesa.
E eu, apesar de amigo e colega de Augusto, disse por fim Fabrício, endireitando-se, não posso deixar de lastimar a sra. d. Joaquina, pela triste conquista que acaba de fazer.
Augusto conheceu que lhe era dado o sinal de combate. Fabrício queria tomar vingança de sua nenhuma condescendência, e pois, preparou-se para sustentar a luta com todo o esforço. Vendo que todos tinham os olhos fitos nele, como que esperando unia resposta, não hesitou.
— Obrigado, disse; nem eu mesmo posso de mim formar outro conceito. Devo, todavia, declarar que, se me fosse dado conhecer a ditosa mortal que conseguiu ganhar os pensamentos e o coração do meu colega, certo que eu lhe daria meus parabéns em prosa e verso, porque Fabrício é, sem contradição, a mais alegre e apreciável conquista!
A ironia o feriu. A interessante Moreninha lançou sobre Augusto um olhar de aprovação e sorriu-se brandamente; gostou de o ver manejar sua arma favorita. Sem se explicar o porquê, também o nosso estudante teve em muita conta aquele sorriso da menina travessa. Fabrício continuou:
— Venha embora o ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso Augusto não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.
— Venha embora o ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso Augusto não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.
Todas as senhoras olharam para o réu daquele horrendo crime de lesa-formosura. Augusto respondeu:
— E o que há aí de mais engraçado, é que Fabrício tem culpa disso, porque, enfim, manda o meu destino que eu sempre tenha andado, ande, e haja de andar em companhia dele, que com a maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances, antes de três dias de amor.
Novo olhar, novo sorriso de aprovação de d. Carolina: novo prazer de Augusto por merecê-los.
Fabrício torceu-se sobre a cadeira e prosseguiu:
— Nada de fugir da questão. Poder-se-ia julgar fraqueza querer de algum modo ocultar que, tanto em prática como em teoria, o meu colega é e se preza de ser o protótipo da inconstância.
Eis o que ele não pode negar, acudiram Leopoldo e Filipe, rindo-se.
— E para que negar, se já o nosso colega afirmou que eu me prezava de ter essa qualidade?
— Misericórdia! exclamou uma das moças.
— É possível?! ... perguntou a avó de Filipe, com seriedade.
— É absolutamente verdade, respondeu o estudante. Lançou depois um olhar ao derredor da mesa e todas as senhoras lhe voltaram o rosto. D. Quinquina tinha nos lábios um triste sorriso. A Moreninha olhou-o com espanto, durante um certo momento, mas logo depois soltou uma sofrível risada e pareceu ocupar-se exclusiva-mente de uma fatia de pudim.
Reinou silêncio por alguns instantes; Fabrício parecia vitorioso; Augusto estava como em isolamento, as senhoras olhavam para ele com receio, e mostravam temer encontrar seus olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhar nascesse para logo o sentimento que as devesse tornar desgraçadas. Desde as fatais palavras de Fabrício, Augusto era naquela mesa o que costumava ser um leproso na Idade Média: o homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraça de outro.
Fabrício compreendeu em quão triste situação estava o seu adversário e inexperiente, se havia de deixá-lo debatendo-se em sua má posição, quis ainda mais piorá-la, e foi talvez arrancá-lo dela. Fabrício, pois, fala; as senhoras embebem nele os olhos e o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de grosso melado, afeta prestar pouca atenção ao seu acusador.