Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo

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— Oh!... Eis aí outra vez o delírio!... disse a velha, vendo a exaltação e o semblante afogueado do enfermo.
— Não, minha mãe, continuou ele; não! Não é delírio... Pois quê!... Não pode o Eterno abençoar a virtude pela minha boca?... Oh! Meus meninos! Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... Ainda uma vez... lá no futuro... vós o sentireis.
Nós estávamos espantados: o rosto do ancião se havia tornado rubro, seus olhos flamejantes... Seus lábios tremiam convulsivamente, sua mão rugosa tinha três vezes nos abençoado.
Escutando suas palavras, eu acreditei que estávamos ouvindo uma profecia infalivelmente realizável, pronunciada por um inspirado do Senhor.
Não parou aí a nossa admiração. O doente, cujas forças pareciam haver reaparecido subitamente, apoiando-se sobre um dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa que estava junto
de seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois breves, os deu à velha dizendo:
— Minha mãe, descosa esses dois breves.
A velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com prontidão. Os breves eram dois: um verde e outro branco.
Depois o ancião, voltando-se para mim, disse:
Menino! Que trazeis convosco que possais oferecer a esta menina?...
Eu corri com os olhos tudo que em mim havia e só achei para entregar ao admirável homem que me falava um lindo alfinete de camafeu, que meu pai me tinha dado para trazer ao peito: maquinalmente, pus-lhe nas mãos o meu camafeu.
O velho quebrou o pé do alfinete e dando-o a sua mãe, acrescentou:
— Minha mãe, cosa dentro do breve branco este camafeu.
E voltando-se para minha bela camarada, continuou:
— Menina! Que trazeis convosco que possais oferecer a este menino?...
A menina, atilada e viva, como já esperando tal pergunta, entregou-lhe um botão de esmeralda que trazia em sua camisinha.
O velho o deu a sua mãe, dizendo:
— Minha mãe, cosa esta esmeralda dentro do breve verde.
Quando as ordens do ancião foram completamente executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o de cor branca, disse-me:
— Tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina. Ele contém o vosso camafeu: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho a fim de que ela o guarde com desvelo.
Eu mal compreendi o que o velho queria: ainda maquinalmente entreguei o breve à linda menina, que o prendeu no cordão de ouro que trazia ao pescoço.
Chegou a vez dela. O homem deu-lhe o outro breve, dizendo:
— Tomai este breve, cuja cor exprime as esperanças do coração daquele menino. Ele contém a vossa esmeralda: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele bom anjo, dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.
Minha bela mulher executou a insinuação do velho com prontidão, e eu prendi o breve ao meu pescoço, com uma fita que me deram.
Quando tudo isto estava feito, o velho prosseguiu ainda:
— Ide, meus meninos; crescei e sede felizes! Vós olhastes para mim, pobre e miserável, e Deus olhará para vós... Ah! Recebei a bênção de um moribundo!... Recebei-a e sai para não vê-lo expirar!
Isto dizendo, apertou nossas mãos com força: eu senti, então, que o velho ardia; senti que seu bafo era como vapor de água fervendo, que sua mão era uma brasa que queimava... Sinto ainda sobre os meus dedos o calor abrasador dos seus e agora compreendo que, com efeito, ele delirava quando assim praticou com duas crianças.
Enfim, nós deixamos aquela morada aflitos e admirados. Sós, nós pensamos no velho e choramos juntos; depois, nas crianças isto não merece reparo, a nossa dor se mitigou, para cuidarmos em brincar outra vez.
De repente a menina olhou para mim e disse:
— E quando minha mãe perguntar pela esmeralda?...
Eu cuidei que lhe respondia, e fiz-lhe igual pergunta:
— E quando meu pai perguntar pelo meu camafeu?
Ficamos olhando um para o outro; passados alguns instantes, minha linda mulher, que me parecera estar pensando, disse sorrindo-se.
— Eu vou pregar uma mentira.
— E qual?
— Eu direi a minha mãe que perdi a minha esmeralda na praia.
— E eu responderei a meu pai que perdi o meu camafeu nas pedras.
— Eles mandarão procurar, sem dúvida...
— E, não o achando, esquecer-se-ão disso.
— E os breves?... Nós os guardaremos?...
— O velho disse que sim. Para que será isto?...
— Disse que é para nos casarmos quando formos grandes.
— Pois então nós os guardaremos.
— Oh! Eu o prometo.
— Eu o juro.
Neste momento soou ave-maria.
— Tão tarde! exclamou a menina...minha mãe ralhará comigo!
E, dizendo isto, correu, esquecendo-se até de despedir-se de mim. Esse fatal descuido acabava de entristecer-me, quando ela, já de longe, voltou-se para onde eu estava e, mostrando-me o breve branco, gritou:
— Eu o guardarei!
Pela minha parte entendi dever dar-lhe igual resposta, e, pois, mostrei-lhe o meu breve verde e gritei-lhe também:
— Eu o guardarei!
Aqui parou Augusto para respirar, tão cansado estava com a longa narração; porém ergueu-se logo, ouvindo à entrada da gruta.
— Alguém nos escuta! disse ele.
— Foi talvez uma ilusão! respondeu a digna hóspeda.
— Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha que faz uma pessoa que corre, tornou Augusto dirigindo-se à entrada da gruta e observando em derredor dela.
— Então?... perguntou a sra. d. Ana.
— Enganei-me, na verdade.
— Mas vê alguma pessoa?...
— Apenas lá vejo sua bela neta, a sra. d. Carolina, pensativa e recostada à efígie da Esperança.
Capítulo VIII: Augusto prosseguindo
A avó de Filipe quis tomar, por sua vez, a palavra; porém o estudante lhe fez ver que ainda muito faltava para o fim de suas histórias, e voltando de novo ao seu lugar, continuou:
— O acontecimento que acabo de relatar, minha senhora, produziu vivíssima impressão no meu espírito; ajudado por minha memória de menino de treze anos, apenas entrei em casa escrevi, palavra por palavra, quanto me havia acontecido. isto me tirou o trabalho de mentir, porque adormecendo sobre o papel que acabava de escrever, meu pai o leu à sua vontade e soube o destino do camafeu, sem precisar que eu lhe dissesse. Ele ainda estava junto de mim quando despertei, exclamando: o meu breve!... o velho!... minha mulher!...
Anda, doidinho, disse-me meu pai com bondade; eu te perdôo as novas loucuras, em louvor da ação que praticaste, socorrendo um velho enfermo; agora, guarda, eu to peço, e mesmo to mando, guarda melhor esse breve do que guardaste o camafeu.
E isto dizendo, deixou-me.
Não se falou mais neste acontecimento; soube que o velho morrera no dia seguinte e que no momento da agonia abençoara de novo a minha camarada e a mim.
Meu pai fez todas as despesas do enterro do velho e socorreu a sua desgraçada família.
Eu nunca mais vi, nem tive notícia alguma da minha interessante camarada, mas nem por isso a esqueci, minha senhora... porque, ou seja que meu coração a tivesse amado deveras, ou que esse breve tivesse alguma coisa de encantador, o certo é que eu ainda hoje me lembro com saudades dessa criança tão travessa, porém tão bela. Sem saber seu nome, pois nem lho perguntei, nem ela mo disse, quando quero falar a seu respeito, digo sempre: a minha mulher! Riem-se... não me importa: eu não posso dizer de outro modo.
Sempre com sua imagem na minha alma, com seu engraçado sorriso diante de meus olhos, com suas sonoras palavras soando a meus ouvidos, passei cinco anos pensando nela de dia, e com ela sonhando de noite; era uma loucura, mas que havia eu de fazer?... Cheguei assim aos meus dezoito anos.
Eu já era, pois, mancebo. Meus pais nada poupavam para me educar convenientemente, e eu aprendia quanto me vinha à cabeça; diziam que a minha voz era sonora, e por tal convidavam-me para cantar em elegantes sociedades; julgavam que eu dançava com graça e lá ia eu para os bailes; finalmente, como cheguei a fazer algumas quadras, pediam-me recitar sonetos em dias de anos, e assim introduziram-me em mil reuniões, onde as belezas formigavam e os amores eram dardejados por brilhantes olhos de todas as cores.
Além disto freqüentava as casas de meus companheiros de estudos e os ouvia contar proezas de paixões, triunfos e derrotas amorosas. Meu amor-próprio se despertou, e tive vontade de amar e ser amado.
Julguei esta minha determinação ainda mais justa, pois tendo ido passar certas férias na roça, e falando mil vezes no meu breve e em minha mulher, ouvi minha mãe dizer uma vez, cru que me julgava longe:
— Temo que esse breve tire o juízo àquele menino; talvez que nos seja preciso casá-lo cedo.
Portanto, para não ouvir somente, mas também para contar alguma vitória de amor, para não endoidecer por causa do breve e, finalmente, para não ser necessário à minha mãe casar-me cedo, determinei-me a amar.
— Esqueceu-se, por conseqüência, de sua mulher e do seu breve! perguntou a sra. d. Ana, interrompendo Augusto.
— Ao contrário, minha senhora, tornou este; foi essa minha resolução que me tornou mais firme e mais amante de minha mulher.
Não sei, continuou Augusto, que teve o amor comigo. para entender que todas as moças deviam rir-se de mim e zombar de meus afetos! Pensa que brinco, minha senhora?... Pois tüi isso mesmo que me sucedeu no decurso de minhas paixões. Eu resumo algumas.
A primeira moça que amei era uma bela moreninha, de dezesseis anos de idade. Fiz-lhe a minha declaração na carta mais patética que um pateta poderia conceber, no fim de três dias recebi uma resposta abrasadora e cheia de protestos de gratidão e ternura; meu coração se entusiasmou com isso... Na primeira reunião de estudantes contei a minha vitória, li a minha carta e a resposta que havia recebido. Fui vivamente aplaudido; porém, oito dias depois, os mesmos estudantes quase me quebraram a cabeça com cacholetas e gargalhadas, porque oito dias, bem contadinhos, depois dessa resposta, a minha terna amada casou-se com um velho de sessenta anos. Jurei não amar moça nenhuma que tivesse a cor morena.
Apaixonei-me logo e fui, desgraçadamente, correspondido por uma interessante jovem tão coradinha, que parecia mesmo uma rosa francesa, Nós nos encontrávamos nas noites dos sábados em certa casa, onde se dava todas as semanas uma partida; era a mais agradável sabatina que podia ter um estudante; porém o meu novo amor chegava a ser tocante demais, e a minha querida levava o ciúme até um ponto que me atormentava prodigiosamente: se passava algum dia em que não a visse e lhe não mandasse uma flor, aparecia-me depois chorosa e abatida; se na tal partida eu me atrevia a dançar com alguma outra moça bonita, era contar com um desmaio certo, e desmaio de que não acordava sem que eu mesmo lhe chegasse ao nariz o seu vidrinho de essência de rosas; tudo mais era por este teor e forma. Este amor já estava um pouco velho, certamente, tinha três meses de idade. Um sábado mandei-lhe prevenir que faltaria à partida; mas tendo terminado cedo meus trabalhos, não pude resistir ao desejo de vê-la e fui à reunião; eram onze horas da noite quando entrei na sala, procurei-a com os olhos e certo moço, com quem me dava, que me entendeu, apontou para um gabinete vizinho. Voei para ele.
Ela estava sentada junto de um mancebo e com as costas voltadas para a porta; tomavam sorvetes. Cheguei-me de manso:conversavam os dois, sem vergonha nenhuma, em seus amores!
Fiquei espantado e tanto mais que, pelo que ouvi, eles já se correspondiam há muito tempo; mas o meu espanto se tornou em fúria quando ouvi o machacaz falar no meu nome, fingindo-se zeloso, e receber em resposta as seguintes palavras: — Augustozinho?... Lamente-o antes, coitado! É um pobre menino com quem me divirto nas horas vagas! ... Soltei um surdo gemido; a traidora olhou para mim e, voltando-se depois para o seu querido, disse com o maior sangue frio: — Ora, aí tem! Perdi por sua causa este divertimento.
Jurei não amar moça nenhuma de cor rosada. Sem emendar-me, ainda tornei-me cego amante de uma jovem pálida, e, como das outras vezes, fui correspondido com ardor; mas desta tive eu provas de afeto muito sérias. Antes de ver-me, ela amava um primo e até escrevia-lhe a miúdo; eu exigi que a minha terceira amada continuasse a receber cartas dele e que as respondesse; consentiu nisso, com a condição de lhe redigir eu as respostas. Belo! disse eu comigo: vou também divertir-me por minha vez à custa de um amante infeliz!
E o negócio ficou assentado.
Infelizmente eu não conhecia o primo da minha amada, mas essa era a infelicidade mais tolerável possível.
Um dia tratamos de encontrar-nos em certa igreja, onde tinha de haver esplêndida festa; cheguei cedo, mas logo depois de minha chegada rebentou uma tempestade e choveu prodigiosamente. Pouco durou o mau tempo, porém as ruas deveriam ter ficado alagadas e a bela esperada não podia vir; apesar disso eu olhava a todos os momentos para a porta e, coisa notável, sempre encontrava os olhos de um outro moço, que se dirigiam também para lá; acabada a festa, ambos nos aproximamos.
— Nós devemos ser amigos, disse ele.
— Eu penso do mesmo modo, respondi.
E apertamos as mãos.
— Sou capaz de jurar que adivinho a razão por que o senhor olhava tanto para aquela porta, continuou ele.
— E eu também.
Convenho: esperávamos ambos nossas amadas e a chuva mangaram conosco.
— Exatamente.
— Mas nós vamos, sem dúvida, vingar-nos, indo agora vê-las à janela.
— Eu queria propor a mesma vingança.
Bravo! ... Iremos juntos... Onde mora a sua?...
— Na rua de...
— Ainda melhor... a minha é na mesma rua.
Saímos da igreja, embraçamo-nos e fomos. A minha amada morava perto, eu avistei-a debruçada na janela, talvez me esperando, pois olhava para o lado donde eu vinha; abri a boca para dizer ao meu novo amigo:.é aquela!... Quando ele me pronunciou com indizível prazer: é aquela!
Julgue, minha senhora, da minha exasperação! Pela terceira vez eu era a boneca de uma menina!...
Não sei por que ainda tive ânimo de tirar o meu chapéu à tal pálida, que ao menos dessa vez se fez cor-de-rosa, talvez por ver-me de braço com o novo amigo.
Passando a maldita casa, Jorge, que assim se chamava o moço, disse-me com fogo:
— Aquela jovem adora-me!
— Está certo disso, meu amigo?
— Tenho provas.
— Acredita muito nelas?
— Tenho as mais fortes; por último recebi ainda a de maior confiança: eu lhe conto. Um estudante a requestou e escreveu-lhe; ela mandou-me a carta, e eu respondi em seu lugar. A correspondência tem continuado por minha vontade e sou eu quem sempre faço a norma das cartas que ela deve escrever; achará isto imprudência, e eu acho um belo divertimento.
— Sim... um belo divertimento...
— Mas que é isso? Está tão pálido!
— Não é coisa de cuidado... Eu... ora... o estudante...
— É por certo um famoso pateta...
— Não é bom ir tão longe...
— Não tem dúvida... é um tolo rematado.
— Fale-me a verdade: eu acho aquela moça com cara de ser sua prima.
— Quem lhe disse?... E, com efeito, minha prima!
— Pois vamos à minha casa.
— E a sua amada?...
— Não me fale mais nela.
Apenas chegamos à minha casa, abri uma gaveta, e tirando dela todas as cartas que Jorge havia escrito à sua prima, e que ela me tinha mandado, assim como as normas que eu redigira para as que deveriam ser enviadas ao meu amigo, acrescentando:
— Concordemos ambos que, se o estudante foi um famoso pateta e um tolo rematado, não o foi menos o primo daquela senhora a quem cortejamos na rua de...
Jorge devorou todas as cartas e normas que lhe dei; depois desatou a rir e, abraçando-me, exclamou:
— Concordemos também, caro estudante, que minha prima tem bastante habilidade para se corresponder com meio mundo, sem se incomodar com o trabalho da redação de suas cartas!
O bom humor de Jorge tornou-me alegre. Jantamos juntos, rimo-nos todo o dia, e só de noite se retirou.
Tratei de dormir, mas, antes de adormecer, falei ainda comigo mesmo: juro que não hei de amar a moça nenhuma de cor pálida.
Desde então declarei guerra ao amor, minha senhora; tornei-me ao que era dantes, isto é, ocupei-me somente em me lembrar de minha mulher e em beijar o meu breve.
Mas eu andava triste e abatido e às vezes pensava assim: ora, pois jurei não amar moça nenhuma que fosse morena, corada ou pálida: estas são as cores, estes são os tipos da beleza... e, portanto, minha mulher terá, a pesar meu, uma das tais cores; logo não me caso com minha mulher e, em última conclusão, serei celibatário; vou ser frade... frade!
Minha tristeza, meu abatimento deu nos olhos da digna, jovial e espirituosa esposa de um de meus bons amigos. Ela me pediu que lhe confiasse as minhas penas e eu não pude deixar de relatar estes três fatos à consorte de um caro amigo.
A única consolação que tive foi vê-la correr para o piano, e ouvi-la cantar as seguintes e outras quadrinhas musicadas no gosto nacional:
I
Menina solteira
Que almeja casar
Não caia em amar
A homem algum;
Nem se/a notável
Por sua esquivança,
Não tire a esperança
De amante nenhum.
II
Mereçam-lhe todos
Olhares ardentes,
Suspiros ferventes
Bem pode soltar:
Não negue a nenhum
Protestos de amor;
A qualquer que for
O pode jurar.
III
Os velhos não devem
Formar exceção,
Porquanto eles são
Um grande partido;
Que, em falta de moço
Que fortuna faça,
Nunca foi desgraça
Um velho marido.
IV
Ciúmes e zelos,
Amor e ternura
Não será loucura
Fingida estudar;
Assim ganhar tudo
Moças se tem vis/o,
Serve muito isto
Antes de casar.
V
Contra os ardilosos
Oponha seu brio:
Tenha sangue frio
Pra saber fugir;
Eu, todos os casos
Sempre deve estar
Pronta pra chorar,
Pronta para rir.
VI
Pode bem a moça,
Assim praticando,.
Dos homens zombando,
A vida passar;
Mas, se aparecer
Algum toleirão,
Sem mais reflexão,
É logo casar.
— Então o negócio é assim, minha senhora? exclamei eu, ao vê-la levantar-se do piano.
— Certamente, me respondeu ela; é este, pouco mais ou menos, o breviário por onde reza a totalidade das moças.
— Fico-lhe extremamente agradecido pelo desengano.
— Estimo que lhe sirva de muito.
— Já serve, minha senhora; já tirei grande proveito dele.
— E como?
— Escute. Abatido e desesperado com os meus infortúnios, eu tinha jurado não amar a mais nenhuma moça que fosse morena, corada ou pálida: estavam, pois, esgotados os belos tipos... eu deveria morrer celibatário.
— E agora?...
— Agora?... Graças ao seu lundu, juro que de hoje avante amarei a todas elas... morenas, coradas, magras e gordas, cortesãs ou roceiras, feias ou bonitas... tudo serve.
— E, com efeito, minha senhora, continuou Augusto, dirigindo-se à sra. d. Ana, fiz-me absolutamente um ser novo, graças ao lundu; guardando e beijando com desvelo o meu querido breve, que sempre comigo trago, eu conservo a lembrança mais terna e constante de minha mulher: ela é o amor de meu coração, enquanto todas as outras são divertimentos dos meus olhos e o passatempo de minha vida. Eis, finalmente, a história de meus amores!... Tais foram as razões que me tornaram borboleta de amor.
Terminando assim, Augusto ia respirar um instante, quando pela segunda vez lhe pareceu ouvir ruído na porta da gruta.
— Alguém nos escuta, disse ele, como da outra vez.
— E talvez uma nova ilusão... respondeu a digna hóspeda.
— Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha de uma pessoa que corre, tornou Augusto, dirigindo-se à entrada da gruta e observando ao derredor dela.
Então?... perguntou a sra. d. Ana.
— Enganei-me, na verdade.
— Mas vê alguém?...
— Apenas lá vejo a sua bela neta, a sra. d. Carolina, que se precipita com a maior graça do mundo sobre uma borboleta que lhe foge, e que ela procura prender.
— Uma borboleta...
Capítulo IX: A Srª D. Ana com suas histórias
Finalmente, o bom do estudante que, quando lhe dava para falar, era mais difuso que alguns de nossos deputados novos na discussão do artigo l o dos orçamentos, julgou dever fazer pausa de suspensão; mas a sra. d. Ana, que já tinha-o por vezes interrompido fora de tempo e debalde, não quis tomar a palavra para responder, sem assegurar-se, dirigindo-lhe estas palavras pela ordem:
— Então concluiu, sr. Augusto?...
Sim, minha senhora; e peço-lhe perdão por me haver tornado incômodo, pois fui, sem dúvida, tão minucioso em minha narração que eu mesmo tanto me fatiguei, que vou beber uma gota d’água.
E isto dizendo, foi ao fundo da gruta, e enchendo o copo de prata na bacia de pedra, o esgotou até o fim: quando voltou os olhos, viu que a boa hóspeda estava rindo-se maliciosamente.
— Sabe de que estou rindo?...disse ela.
— Certamente que não o adivinho.
— Pois estava neste momento lembrando-me de uma tradição muito antiga, seguramente fabulosa, mas bem apropositada dessa fonte, e que tem muita relação com a história dos seus amores e com o copo d’água que acaba de beber.
— S.S.a põe em tributo a minha curiosidade...
— Eu o satisfaço com todo o prazer.
A sra. d. Ana principiou:
AS LÁGRIMAS DE AMOR
— Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi à minha avó, que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.
Era no tempo em que ainda os portugueses não haviam sido por uma tempestade empurrados para a terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, uma jovem tamoia linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa disto estava no agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar à ilha, e vinte vezes já o havia feito sem que de uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela era Ahy. A pobre Ahy, que sempre o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos eram tão mal pagos que Ahy de cansada procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecê-lo; porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe e nem o esqueceu.
Desde então tomou outro partido: chorou. Ou porque a sua dor era tão grande que lhe podia exprimir o amor em lágrimas desde o coração até os olhos, ou porque, selvagem mesmo, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto, Ahy chorou.
E também porque nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a moça julgou dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Ahy cantou.
Seu canto era triste e selvagem, mas terno canto. Dizem que um velho frade português, ouvindo-o por tradição ao depois de muitos anos, o traduziu para a nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta.
Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Ahy subia ao rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca dela dera fé, nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua cabeça.