Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo

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— Pernas finas também é moda, presentemente.
— Deus me livre!...acudiu d. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas.
— Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou d. Quinquina. Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.
— Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar as dúvidas.
— Como?
— Facilmente: vamos medir as nossas pernas.
Ouvindo tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo da cama, arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas; porém, d. Gabriela, que não parecia estar consigo e que só por honra da firma dissera o seu ‘‘nem eu", veio deixá-lo com água na boca.
Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos agora os nossos vestidos!
— Que tinha isso?... acudiu d. Quinquina; não somos todas moças?... Dir-se-ia que não temos dormido juntas.
— E verdade, acrescentou d. Clementina e, além do que, não se veria demais senão quatro ou cinco saias por baixo do segundo vestido.
— E talvez algum saiote... vamos a isto!
— Não... não... disse, por sua vez, d. Joaninha.
— Pois por mim não era a dúvida, tornou d. Clementina, com ar de triunfo, recostando-se mole e voluptuosamente nas almofadas, e deixando escorregar de propósito uma das pernas para fora do leito, até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho.
— Quem me dera já casar! ... suspirou ela.
Pobre Augusto! ... Não te chamarei eu feliz?... Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!...Através da finíssima meia aparecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outorgado àquele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já não se podia suster... já estava de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força procurava iludir a sua imaginação.
— Quem me dera já casar!... repetiu d. Clementina.
— Isto é fácil, disse d. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... Mais de vinte me atormentam! Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro; pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e que se encarrega das minhas cartas recebeu das minhas mãos duas...
— Logo duas?...
— Ora, pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona: mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é a do sr. Joãozinho e a de verde é do sr. Juca, sabem o que fez?...trocou as cartas!
— E o resultado?...
— Ei-lo aqui, respondeu d. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, e quando descia, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito do sr. Joãozinho: "Ingrata! ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de delito da tua perfïdia! Escreves a outro!? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meu coração; e, bem que tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogado, o meu ciúme e justo ressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e só te poderás livrar se apelares dessa sentença para o poder moderador de minha cega paixão."
— Bravo, d. Gabriela! O sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência?
— Não, é doutor.
Bem mostra pelo bem que escreve.
— Mas eu sou bem tola! Conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada!
— Isso é razoável, disse d. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiança de d. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o sr. Filipe a deixar esta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direta ao caramanchão, um embrulhozinho com uma madeixa de meus cabelos.
Que asneira!... Por que lho não entrega ou não lho manda entregar?
— Ora... eu tenho muita vergonha...antes quero assim; até parece mais romântico.
— São caprichos de namorados! falou d. Quinquina; havia tempo para isso! Mas, enfim, de futilidades é que o amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meu predileto está de luto e por isso exige que eu vá á festa de... com uma fita preta no cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que não tome sorvetes, para não constipar, que não dê dorninus tecum a moço nenhum que espirrar ao pé de mim, e que jamais me ria quando ele estiver sério; e a tudo isso julga ele ter direito, por ser tenente da Guarda Nacional! Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as vezes que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aos moços mesmo quando não espirram e na() posso ver o sr. tenente Gusmão sério sem soltar uma gargalhada.
— Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo da cama.
— E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda a d. Joaninha.
— Eu?... O que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo.
— E a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras de tanto agachar-se.
— E o sr. Fabrício?... E o sr. Fabrício?... exclamaram as três.
— Pois bem, tornou d. Joaninha, é o único de quem gosto.
— Mas que temos nós hoje feito nesta ilha?... Que triunfo havemos conseguido?... Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado alguns corações!
— Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do sr. Leopoldo, disse d. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir com paciência quanta frivolidade vem, não direi à cabeça, porque parece que os tolos como que não a têm, porém aos lábios de um desenxabido namorado. O tal sr. Leopoldo... não é graça, eu ainda não vi estudante mais desestudável!...
— Você, d. Joaninha, acudiu d. Clementina, tem-se regalado hoje com o incomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!...
— Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de lhe olhar para as pernas... mas também você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu primo; confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.
— Pois confessamos... isso é verdade.
— Pela minha parte não diga nada, assobiou d. Gabriela mirando-se no espelho; mas enfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que eu esteja, vejo-me sempre cercada de adoradores: hoje, por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me constantemente seis... era impossível ter tempo de mangar com todos a preceito.
— Mas, d. Gabriela, onde está o seu talento?...
— Pois bem, que se ponha outra no meu lugar.
— Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um que não teve vergonha de escrever isto em um papel:
Num dia, numa hora,
No mesmo lugar
Eu gosto de amar
Quarenta,
Cinqüenta,
Sessenta:
Se mil forem belas,
Amo a todas elas.
— Que pateta!
— Que tolo!...
— Que vaidoso!
— Essa opinião segue também o Augusto!
— Qh!... e esse paspalhão!...
Ei-las comigo... murmurou entre os dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço a modo de cágado.
— Como lhe fica mal aquela cabeleira!... Assemelha-se muito a uma preguiça.
— Tem as pernas tortas.
— Eu creio que ele é corcunda.
— Não aquilo é magreza.
— Forte impertinente! Falando, é um Lucas...
— Há de ser interessante dançando!
— Vamos nós tomá-lo à nossa conta?
— Vamos; pensemos nos meios de zombar dele crue lmente... Pois pensemos...
Mas elas não tiveram tempo de pensar, porque, nesse momento, ouviu-se um grito de dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde ainda há pouco só se respirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se espantadas.
— Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou d. Joaninha.
— Coitada! Que lhe sucederia?...
— Vamos ver.
As quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto.
Augusto, que não estava menos assustado, saiu do seu esconderijo, vestiu-se apressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos apuros, quando deu com os olhos na carta do sr. Joãozinho, que, com a pressa e agitação, havia d. Gabriela deixado cair.
O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão e cuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.
Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira.
O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por d. Carolina.
Capítulo XIII: Os quatro em conferência
Ninguém se arreceie pela nossa travessa, O grito de dor foi, na verdade, seu; mas, se alguém corre perigo, não é certamente ela. O caso é simples.
Morava com a sra. d. Ana uma pobre mulher, por nome Paula muito estimada de todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de d. Carolina, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na criação da menina lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça.
Ora, todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar mas o nosso amigo Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honra à meia dúzia de lindas garrafas das quais se achava ternamente enamorado: contudo ele pensava que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a requestar aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a lobrigou a entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si, mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de seu pai e sua mãe e sua família.
Não havia remédio senão corresponder a brindes tão obrigativos. Depois não houve ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse dever com a sua meiga língua dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco impertinente, forçava Paula a virar copos cheios. Passado algum tempo, e muito naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez desafiava Keblerc a fazer novos brindes: em resultado, as suas garrafas foram-se. Paula deixou-se ficar sentada risonha e imóvel, junto à mesa, enquanto o alemão, rubicundo e reluzente se dirigiu para a sala.
Quando daí a pouco a ama de d. Carolina quis levantar-se, pareceu-lhe que estava uma nuvem diante dos olhos, que os copos dançavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe à roda, que o assoalho abaixava-se e levantava-se debaixo dos seus pés; depois... não pôde dar mais que dois passos, cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra uma porta. Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar que Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar, e, por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava de ter um ataque.
A primeira pessoa que entrou em casa foi d. Carolina que, vendo a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:
— Oh, minha mãe!... Foi este o seu grito de dor.
Momentos depois, Paula se achava deitada numa boa cama e rodeada por toda a família; porém havia algazarra tal, que mal se entendia uma palavra.
— Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza, gritou uma avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para medicina; é fraqueza complicada com o tempo frio... não vale nada... venha um copo de vinho!
E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre Paula que, por mais lépida e risonha que fosse engolindo a largos tragos, não pôde livrar-se de que a interessante Esculápia lhe entornasse boa porção pelos vestidos.
— São maleitas! exclamava d. Violante, com toda a força de seus pulmões... São maleitas! ... Quem lhe olha para o nariz diz logo que são maleitas! Eu já vi curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda de cobra moída, torrada e depois desfeita num copo d’água tirada do pote velho com um coco novo e com a mão esquerda, pelo lado da parede. E fazer isto já.
— São lombrigas! gritava uma terceira.
— É ataque de estupor! bradava a quarta senhora.
— É espírito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida que as primeiras... E espírito maligno que lhe entrou no corpo... Venha quanto antes um padre com água benta e seu breviário.
— Ora, para que estão com tal azáfama?... disse uma senhora que acabava de entrar no quarto; não se vê logo que isto não passa de uma mona, que a boa da Paula tomou? Olhem; até tem o vestido cheio de vinho.
— Mona, não senhora! acudiu d. Carolina; a minha Paula nunca teve tão feio costume, e, se está molhada com vinho, a culpa é desta senhora, que há pouco lhe despejou meia garrafa por cima. Oh! é bem cruel que, mesmo vendo-se a minha dor, digam semelhantes coisas!
No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina travessa! ... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas.
Junto do leito apareceram os quatro estudantes.
Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para denunciar-lhes com evidência a natureza da moléstia.
— Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus colegas; é uma mona de primeira ordem.
— Está claro, vamos sossegar estas senhoras.
— Não, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas pelo caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher, nenhuma delas quer ver o que está diante de seus olhos, nem sentir o cheiro que lhes está entrando pelo nariz; minha irmã ficaria inconsolável, brigaria conosco e não nos acreditaria, se lhe disséssemos que sua ama se embebedou; e portanto, podemos aproveitar as circunstâncias para zombar de todas elas e divertir-nos fazendo uma conferência.
— Oh, diabo! ... isso é catecismo dos charlatões!
— Ora, não sejas tolo... não pareces estudante; devemos lançar mão de tudo o que nos possa dar prazer e não ofenda os outros.
— Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que ela está espirituosa demais? perguntou Augusto.
— Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando entendido que as honras pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o caso é que nos não entendam, ainda que também nos não entendamos.
— Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta gente, que por força conhecerá esta patacoada.
— Qual conhecer?... Aqui ninguém nos entende, tornou Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz teatralmente solene:
— Meus senhores, rogamos breves momentos de atenção; queremos conferenciar.
Movimento de curiosidade.
Seguiu-se novo exame da enferma, no qual os quatro estudantes fingiram observar o pulso, a língua e os olhos da doente; auscultaram e percutiram-lhe o peito e fizeram todas as outras pesquisas do costume.
Depois eles se colocaram em um dos ângulos do quarto; Filipe teve a palavra. Profundo silêncio.
— Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermidade que não nos deixa de pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou respeitosamente submeter o meu juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que nos vamos ocupar não é nova para nós; creio mesmo, senhores, que qualquer de vós já a tem padecido muitas vezes...
— Está enganado.
— Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma baquites. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela decomposição dos éteres espasmódicos e engendrados no alambique intestinal, uma vez que a compressão do diafragma lhes causa vibrações simpáticas que os façam caminhar pelo canal colédoco até o periostio dos pulmões...
— C’est trop fort!...
— Daí, passando à garganta, perturbam a quimificação da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de um jato causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma proctorragia nas glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas, no esfíncter do cerebelo, causa um retrocesso prostático, como pensam os modernos autores, e promovem uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por conseqüência isto é nervoso.
— Muito bem concluído.
— O tratamento que proponho é concludente: algumas gotas de éter sulfúrico numa taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento dos frutos do coffea arabica torrados, ou mesmo o thea sinensis; e quando isto não baste, o que julgo impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas libras de sangue de menos não farão falta à doente: disse.
— Como ele fala bem, murmurou uma das moças.
Fabrício tomou a palavra.
— Sangue! Sempre sangue! Eis a medicina romântica do insignificante Broussais! Mas eu detesto tanto a medicina sanguinária, como a estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária. Desde Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... Ah! Quebrai vossas lancetas, senhores; para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática com o Amazonas ao pé!... Queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! Se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por não se ter ainda descoberto o meio de dividir cm um milhão de partes cada simples átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do cozimento do coffea arabica...
— Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes os têm tomado?...
— Eis aí a consideração que os leva ao erro! ... Senhor meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos: eis a grande verdade! ... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupamos e que vão mostrar a superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal, já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-ia na rua... E certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com cores e até remoçou e ficou mais bonita... Outro fato.
— Basta! Basta!
— Pois bem, basta; e propondo a aplicação das nihilitas nihilitatis na dose da trimilionésima parte de um grão, dou por terminado o meu discurso.
— O sr. Leopoldo tem a palavra.
— Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer; porque, enfim, se simula similibus curantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.
Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal, que d. Carolina o escolheu para assistência de sua ama.
Augusto determinou as aplicações equivalentes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo levantada no quarto.
— Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!
— Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!
— Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também de escalda-pés!
— Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!
— Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!
— Aquilo é pressentimento!
— Sr. doutor, um escalda-pés! .
— Pois bem, minha senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!
E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, as senhoras mezinheiras.
Capítulo XIV: Pedilúvio sentimental
Ria-se, jogava-se, brincava-se: todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de d. Carolina tomado seu copo de vinho a mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E, além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável prognóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...
Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente: grande alemão para roncar!... Era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!
Dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.
Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como era seu velho costume haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a sra. d. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens para o chá; d. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o deficit provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que d. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, com o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jogo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...
A rapaziada empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha um diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos: era um homem de estatura muito menos que a ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivos, gordo, de pernas arqueadas, ajuntando ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes. por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O sr. Batista (este o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.