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–Ah nada. O Sr. Thompson só queria dizer —oi—.
Maya cruzou os braços novamente.
–E eu que pensei que estávamos fazendo um progresso bom.
–Não seja ridícula. Reid zombou dela. Thompson é apenas um idoso inofensivo…
–Inofensivo? Ele carrega uma arma aonde quer que vá – protestou Maya. E não pense que eu não o vejo nos observando de sua janela. É como se ele estivesse espionando… Sua boca se abriu um pouco. Ah meu deus, ele sabe sobre você? O Sr. Thompson é um espião também?
—Chhh, Maya, eu não sou um espião.
–Na verdade, pensou, é exatamente o que você é…
–Eu não acredito nisso! Ela exclamou. É por isso que ele é nossa babá quando você sai?
–Sim, ele admitiu em voz baixa. Não tinha que dizer a ela as verdades não solicitadas, mas não havia muito sentido em esconder as coisas dela já que faria estimativas tão precisas, de qualquer maneira.
Esperava que ficasse irritada e começasse a lançar acusações novamente, mas em vez disso ela balançou a cabeça e murmurou:
– Irreal. Meu pai é espião e nosso maluco da porta ao lado é o guarda-costas. Então, para sua surpresa, ela o abraçou pelo pescoço, quase derrubando as caixas de pizza da mão dele:
–Eu sei que você não pode me dizer tudo. Tudo que eu queria era alguma verdade.
–Sim, sim, ele murmurou. Arriscando a segurança internacional para ser um bom pai. Agora vá acordar sua irmã antes que a pizza fique fria. E Maya? Nem uma palavra disso para Sara.
Foi até a cozinha e pegou alguns pratos e guardanapos e serviu três copos de refrigerante. Alguns momentos depois, Sara se arrastou para a cozinha, esfregando seus olhos de sono.
—Oi, papai, ela murmurou.
–Ei, querida. Sente-se. Você tem dormindo bem?
–Mm, ela murmurou vagamente. Sara pegou um pedaço de pizza e mordeu a ponta, mastigando em círculos lentos e preguiçosos.
Estava preocupado com ela, mas tentou não deixar transparecer. Em vez disso, pegou uma fatia da pizza de linguiça e pimenta. Estava a meio caminho de sua boca quando Maya interveio, arrancando-a de sua mão.
—O que você acha que está fazendo? Ela exigiu.
–…Comendo? Ou tentando.
–Hum, não. Você tem um encontro, lembra?
–O que? Não, isso é amanhã… Parou, incerto. Ah, Deus, é hoje à noite, não é? Quase bateu na própria testa.
—Claro que sim, disse Maya com uma boca cheia de pizza.
–Além disso, não é um encontro. É jantar com um amigo.
Maya encolheu os ombros. Bem. Mas se você não se preparar, você vai se atrasar para o —jantar com um amigo.
Olhou para o relógio. Estava certa; ele deveria encontrar Maria às cinco.
–Vá, sh. Se troque. Ela o conduziu para fora da cozinha e correu para o andar de cima.
Com tudo acontecendo e suas contínuas tentativas de iludir seus próprios pensamentos, quase esqueceu a promessa de se encontrar com Maria. Houve várias tentativas malucas nas últimas quatro semanas, sempre com algo atrapalhando de um lado ou de outro – embora, se ele estivesse sendo honesto consigo mesmo, geralmente, ele dava desculpas. Maria parecia finalmente cansar-se disso e não só planejara o passeio, como também escolhera um lugar entre Alexandria e Baltimore, onde ela morava, se ele prometesse vê-la.
Ele sentia falta dela. Sentia falta de estar perto dela. Eles não eram apenas parceiros na Agência; havia uma história, mas Reid não conseguia se lembrar da maior parte. De quase nada, na verdade. Tudo o que sabia era que, quando estava perto dela, havia um sentimento distinto de que estava na companhia de alguém que se importava com ele – uma amiga, alguém em quem ele podia confiar, e talvez até mais do que isso.
Entrou em seu closet e tirou um conjunto que achava que iria funcionar bem para a ocasião. Era fã de um estilo clássico, embora soubesse que seu guarda-roupa, provavelmente, era de pelo menos uma década atrás. Vestiu um par de calças cáqui plissadas, uma camisa xadreza e uma jaqueta de tweed com remendos de couro nos cotovelos.
—É isso que você vai vestir? Maya perguntou, assustando-o. Estava encostada no batente da porta do quarto dele, mastigando casualmente uma borda de pizza.
–O que há de errado?
–O que há de errado é que você parece que acabou de sair de uma sala de aula. Venha. Ela o levou pelo braço de volta para o closet e começou a revirar as roupas dele. Nossa, papai, você se veste como se tivesse oitenta anos…
—O que foi?
–Nada! Ela o chamou de volta. Ah. Aqui. Ela tirou um casaco esportivo preto – o único que ele possuía. Use isso, com algo cinza embaixo. Ou branco. Uma camiseta ou uma polo. Livre-se das calças de papai e coloque um jeans. Escuros. Justinhos.
A pedido de sua filha, mudou de roupa enquanto ela o esperava no corredor. Ele supunha que deveria se acostumar com essa estranha inversão de papéis, pensou. Um momento era o pai superprotetor; no outro estava desmoronando diante de sua desafiadora e astuta filha.
—Muito melhor, disse Maya quando ele se apresentou novamente. Você quase parece estar pronto para um encontro.
–Obrigado, ele disse, —e isso não é um encontro.
–Você continua dizendo isso. Mas você vai jantar e beber com uma mulher misteriosa que você diz ser uma velha amiga, mesmo que você nunca tenha mencionado ela e nunca a tenhamos conhecido…
–Ela é uma velha amiga…
–E, devo acrescentar, Maya disse atropelando-o, ela é bastante atraente. Nós a vimos sair do avião em Dulles. Então, se algum de vocês está procurando algo mais do que ser —velhos amigos, este é um encontro.
—Deus, você e eu não estamos falando sobre isso. Reid estremeceu. Mas em sua mente, estava entrando em pânico ligeiramente. Ela está certa. É um encontro. Ele vinha fazendo tanta ginástica mental ultimamnte que não parou o suficiente para considerar o que —jantar e beber— significava para um casal de adultos solteiros. Tudo bem, admitiu —vamos dizer que é um encontro. Hum… o que eu faço?
–Você está me perguntando? Eu não sou exatamente uma especialista. Maya sorriu. Fale com ela. Conheça-a melhor. E por favor, tente ao máximo ser interessante.
Reid zombou e balançou a cabeça.Com licença, mas sou muito interessante. Quantas pessoas você conhece que podem falar da história inteira da Rebelião Bulavin?
–Apenas uma. Maya revirou os olhos. E não fale para essa mulher toda a história da Rebelião Bulavin.
Reid riu e abraçou a filha.
–Você vai ficar bem, ela assegurou.
–Você também vai, disse ele. Eu vou ligar para o Sr. Thompson para vir…
–Papai, não! Maya se afastou de seu abraço. Por favor. Eu tenho dezesseis anos. Eu posso olhar a Sara por algumas horas.
—Maya, você sabe o quanto é importante para mim que vocês duas não estejam sozinhas…
–Papai, ele cheira a óleo de motor, e tudo o que ele fala é 'os bons e velhos tempos' com os fuzileiros, disse ela exasperada. Nada vai acontecer. Nós vamos comer pizza e assistir a um filme. Sara vai estar na cama antes de você voltar. Nós ficaremos bem.
—Eu ainda acho que o Sr. Thompson deveria vir.
–Ele pode espiar pela janela como costuma fazer. Nós ficaremos bem. Eu prometo. Temos um ótimo sistema de segurança e trancas em todas as portas, e eu sei da arma perto da porta da frente…
–Maya! Reid exclamou. Como ela sabia disso? Não mexa com isso, você entende?
–Eu não vou tocá-la, disse ela. Estou apenas dizendo. Eu sei que está ali. Por favor. Deixe-me provar que posso fazer isso.
Reid não gostou da ideia de as meninas estarem sozinhas em casa, de maneira alguma, mas ela estava praticamente implorando. Diga-me o plano de fuga, disse ele.
—Tudinho?! Ela protestou.
–Tudinho.
—Tudo bem. Ela virou o cabelo por cima do ombro, como sempre fazia quando estava irritada. Seus olhos rolaram para o teto enquanto ela recitava, monótona, o plano que Reid tinha feito logo após a sua chegada na nova casa. Se alguém vier até a porta da frente, devo primeiro certificar-me de que o alarme está acionado e que a fechadura e a trava estão ligadas. Então eu vejo no olho mágico para ver se é alguém que eu conheço. Se não for, eu ligo para o Sr. Thompson e peço que ele investigue primeiro.
–E se for? Ele perguntou.
—Se é alguém que eu conheço, Maya continuou, eu verifico a janela lateral – cuidadosamente – para ver se há mais alguém com a pessoa. Se houver, eu chamo o Sr. Thompson para vir e investigar.
—E se alguém tentar forçar a porta?
–Então, vamos para o porão e entramos na sala de ginástica, ela falou. Uma das primeiras reformas que Reid fez ao entrar foi ter a porta da pequena sala no porão substituída por outra de aço por dentro. Tinha três fechaduras pesadas e dobradiças de liga de alumínio. Era à prova de balas e à prova de fogo, e a equipe de tecnologia da CIA que o instalara alegava que precisaria de uma dúzia de aríetes da SWAT para derrubá-la. Isso efetivamente transformou a pequena academia em uma sala de segurança.
–E então? Ele perguntou.
–Nós chamamos o Sr. Thompson primeiro, disse ela. E então nove e um. Se nos esquecermos de nossos celulares ou não conseguirmos acessá-los, há um telefone fixo no porão pré-programado com o número dele.
–E se alguém invadir, e você não puder chegar ao porão?
–Então, vamos para a saída mais próxima disponível, Maya disparou. Uma vez lá fora, fazemos o máximo de barulho possível.
Thompson tinha um monte de limitações, mas dificuldade de ouvir não era uma delas. Certa noite, Reid e as garotas estavam com a TV muito alta enquanto assistiam a um filme de ação, e Thompson veio correndo ao som do que achava que poderiam ter sido tiros.
–Mas devemos sempre ter nossos telefones conosco, no caso de precisarmos fazer uma ligação assim que estivermos em algum lugar seguro.
Reid assentiu com aprovação. Ela recitou todo o plano – exceto uma parte pequena, mas crucial.
–Você esqueceu algo.
–Não, eu não. Ela franziu a testa.
–Quando estiver em algum lugar seguro, e depois de ligar para Thompson e as autoridades…?
–Ah, certo. Então ligamos para você imediatamente e informamos o que aconteceu.
–OK.
–Ok? Maya levantou uma sobrancelha. Ok, como, você vai nos deixar sozinha desta vez?
Ele ainda não gostava da ideia. Mas seria só por algumas horas, e Thompson estaria bem ao lado.
–Sim, disse ele, finalmente.
Maya soltou um suspiro de alívio.
–Obrigada. Nós ficaremos bem, eu juro. Ela o abraçou novamente, brevemente. Virou a cabeça para baixo, mas depois pensou em outra coisa.
–Posso fazer apenas mais uma pergunta?
–Certo. Mas eu não posso prometer que vou responder.
–Você vai começar a… viajar, de novo?
—Ah. Mais uma vez a pergunta dela o pegou de surpresa. A CIA lhe ofereceu o emprego de volta – na verdade, o próprio diretor da Inteligência Nacional havia exigido que Kent Steele fosse reintegrado, mas Reid ainda não tinha dado uma resposta, e a Agência ainda não havia exigido uma. Na maioria dos dias ele evitava completamente pensar nisso.
—Eu… gostaria de dizer não. Mas a verdade é que eu não sei. Eu ainda não me decidi. Ele fez uma pausa antes de perguntar:
– O que você pensaria se eu voltasse?
–Você quer minha opinião? Ela perguntou surpresa.
–Sim eu quero. Você é honestamente uma das pessoas mais inteligentes que conheço e sua opinião é muito importante para mim.
–Quero dizer… por um lado, é bem legal, saber o que eu sei agora.
–Sabendo o que você acha que sabe, Reid corrigiu.
–Mas também é bem assustador. Eu sei que há uma chance muito real de você se machucar, ou… ou algo pior. Maya ficou quieta por um tempo.
–Você gosta disso? Trabalhar para eles?
Reid não respondeu diretamente a ela. Estava certa; a provação pela qual ele passara tinha sido aterrorizante e ameaçara sua vida mais de uma vez, assim como a vida de ambas as garotas. Não suportaria se algo acontecesse com elas. Mas a dura verdade – e uma das maiores razões pelas quais ele se mantinha tão ocupado ultimamnte – era que gostava disso e sentia falta disso. Kent Steele ansiava pela caçada.
Houve um tempo, quando tudo isso começou, que ele reconhecia essa parte dele como se fosse uma pessoa diferente, mas isso não era verdade. Kent Steele era um pseudônimo. Ele ansiava por isso. Sentia falta disso. Era uma parte dele, tanto quanto ensinar e criar duas garotas. Embora suas lembranças fossem confusas, era parte de seu eu maior, sua identidade, e não fazer aquilo era como uma estrela do esporte sofrer uma lesão que acabasse com a sua carreira: trouxe consigo a pergunta: Quem sou eu, se não for ele?
Não precisou responder à pergunta dela em voz alta. Maya podia ver em seu olhar a mil metros.
–Qual é o nome dela de novo? Ela perguntou de repente, mudando de assunto.
Reid sorriu timidamente. Maria—
–Maria, disse ela pensativa. Certo. Aproveite o seu encontro. Maya desceu as escadas.
Antes de seguir, Reid teve uma pequena reflexão tardia. Abriu a gaveta de cima da cômoda e remexeu na parte de trás até encontrar o que estava procurando – uma garrafa velha de colônia cara, que não usava há dois anos. Era a favorita de Kate. Ele cheirou o difusor e sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Era um aroma familiar e almiscarado que carregava consigo uma enxurrada de boas lembranças.
Ele borrifou algumas vezes o perfume no pulso e passou em cada lado do pescoço. O cheiro era mais forte do que ele lembrava, mas agradável.
Então, outra memória passou por sua visão.
A cozinha na Virgínia. Kate está com raiva, apontando para alguma coisa na mesa. Não apenas com raiva, ela está com medo. Por que você tem isso, Reid? Ela pergunta acusadoramente. E se uma das meninas tivesse encontrado? Me responda!
Ele afastou a visão antes que a inevitável enxaqueca aparecesse, mas isso não tornou a experiência menos perturbadora. Não conseguia se lembrar de quando ou por que essa briga aconteceu; ele e Kate raramente discutiam, e na memória ela parecia assustada – ou com medo do que quer que eles estivessem discutindo a respeito, ou possivelmente com medo dele. Nunca lhe dera uma razão para se amedrontar. Pelo menos não que ele pudesse se lembrar…
Suas mãos tremiam quando uma nova percepção o atingiu. Não conseguia se lembrar, o que significava que poderia ter sido suprimida pelo implante. Mas por que quaisquer memórias de Kate foram apagadas com o Agente Zero?
–Papai! Maya o chamou do fundo das escadas. Você vai se atrasar!
—Sim, ele murmurou. Chegando. Ele teria que encarar a realidade de que ou ele procurava uma solução para seu problema, ou as lembranças ocasionais que ressurgiam continuariam a se arrastar, confusas e dissonantes.
Mas enfrentaria essa realidade mais tarde. Agora tinha uma promessa a cumprir.
Ele desceu as escadas, beijou cada uma de suas filhas no topo da cabeça e saiu para o carro. Antes de caminhar pela calçada, ele se certificou de que Maya havia acionado o alarme, e então entrou na SUV prateada que havia comprado algumas semanas antes.
Mesmo que estivesse muito nervoso e certamente excitado em ver Maria de novo, ele ainda não conseguia sacudir a bola de medo em seu estômago. Não podia deixar de sentir que deixar as meninas sozinhas, mesmo que por pouco tempo, era uma péssima ideia. Se os eventos do mês anterior lhe ensinaram alguma coisa, foi em primeiro lugar que não faltavam ameaças para vê-lo sofrer.
CAPÍTULO TRÊS
—Como você está se sentindo esta noite, senhor? A enfermeira da noite perguntou educadamente quando ela entrou em seu quarto de hospital. O nome dela era Elena, ele sabia, e era suíça, embora falasse com ele em inglês com um sotaque acentuado. Ela era baixinha e jovem, a maioria diria bonita, e bem alegre.
Rais não disse nada em resposta. Ele nunca respondia. Apenas olhou quando ela colocou um copo de isopor em sua mesa de cabeceira e começou a inspecionar cuidadosamente suas feridas. Sabia que sua alegria era supercompensação por seu medo. Sabia que não gostava de estar no quarto com ele, apesar da dupla de guardas armados atrás dela, observando cada movimento seu. Ela não gostava de tratá-lo, nem de falar com ele.
Ninguém gostava.
A enfermeira, Elena, inspecionou suas feridas com cautela. Ele podia dizer que ela estava nervosa perto dele. Sabiam o que tinha feito; que havia matado em nome de Amun.
Ficariam com muito mais medo se soubessem quantos, pensou ironicamente.
–Você está se curando muito bem, ela disse a ele. Mais rápido do que o esperado. Ela dizia aquilo a ele todas as noites, o que para ele significava espero que você vá embora daqui em breve.
Isso não era uma boa notícia para Rais, porque quando estivesse finalmente bem o suficiente para sair, provavelmente seria enviado para um buraco horrível no chão, um local escuro da CIA no deserto, para ganhar mais ferimentos enquanto o torturavam por informações.
Como Amun, nós aguentamos. Esse tinha sido seu mantra por mais de uma década, mas esse não era mais o caso. Amun não existia mais, até onde Rais sabia; sua ação em Davos havia fracassado, seus líderes tinham sido detidos ou mortos, e todas as Agências de segurança do mundo sabiam deles, o glifo de Amun que seus membros tinham queimando a pele.
Rais não tinha permissão para assistir à televisão, mas recebeu notícias de seus guardas policiais armados, que falavam com frequência (e com bastante afinco, muitas vezes para o aborrecimento de Rais).
Ele próprio tirou a marca de sua pele antes de ser levado ao hospital em Sion, mas acabou sendo em vão; eles sabiam quem era e pelo menos um pouco do que tinha feito. Mesmo assim, a cicatriz irregular e manchada de rosa, onde a marca já estivera em seu braço, era um lembrete diário de que Amun não existia mais, e assim parecia apropriado que seu mantra mudasse.
Eu aguento.
Elena pegou o copo de isopor, cheio de água gelada e um canudo.
–Você gostaria de algo para beber?
Rais não disse nada, mas ele se inclinou para a frente e separou os lábios. Ela guiou o canudo na direção dele com cautela, com os braços totalmente estendidos e travados nos cotovelos, o corpo reclinado em ângulo. Estava com medo; quatro dias antes, Rais tentara morder o Dr. Gerber. Seus dentes tinham raspado o pescoço do médico, nem mesmo rasgou a pele, mas ainda assim, justificou um soco no queixo vindo de um de seus guardas.
Rais não tentou nada dessa vez. Tomou goles longos e lentos através do canudo, aproveitando o medo da menina e a ansiedade tensa dos dois policiais que o observavam atrás dela. Quando terminou, ele se inclinou para trás novamente. Ela suspirou audivelmente de alívio.
Eu suporto.
Ele havia sofrido bastante nas últimas quatro semanas. Havia sofrido uma nefrectomia para remover seu rim perfurado. Havia sofrido uma segunda cirurgia para extrair uma parte de seu fígado dilacerado. Havia sofrido um terceiro procedimento para garantir que nenhum de seus outros órgãos vitais tivesse sido danificado.
Passou vários dias na UTI antes de ser transferido para uma unidade médico-cirúrgica, mas nunca saiu da cama onde estava algemado pelos dois pulsos. As enfermeiras o viraram e mudaram sua comadre e o mantiveram tão confortável quanto puderam, mas ele nunca teve permissão para se levantar, ficar de pé, para se movimentar por vontade própria.
As sete facadas em suas costas e uma em seu peito foram suturadas e, como a enfermeira noturna, Elena, continuamente lhe lembrava, estava curando bem. Ainda assim, havia pouco que os médicos pudessem fazer sobre os danos nos nervos. Às vezes, suas costas inteiras ficavam dormentes, até os ombros e ocasionalmente até os bíceps. Não sentia nada, como se aquelas partes de seu corpo pertencessem a outra pessoa.
Outras vezes acordava de um sono sólido com um grito na garganta enquanto uma dor lancinante rasgava através dele como uma tempestade de raios furiosa. Nunca durou muito, mas era aguda, intensa e vinha de forma irregular. Os médicos os chamavam de —ferrões, um efeito colateral visto às vezes naqueles com danos nos nervos tão extensos quanto os dele. Eles asseguraram-lhe que esses ferrões frequentemente desapareciam e paravam por completo, mas não podiam dizer quando isso aconteceria. Em vez disso, disseram que tinha sorte de não haver danos na medula espinhal. Eles disseram que teve sorte de ter sobrevivido aos ferimentos.
Sim, sorte, pensou amargamente. Sorte que estava se recuperando apenas para ser empurrado para os braços de um lugar escuro da CIA. Sorte de ter tempos de trabalho, tudo eliminado ao longo de um único dia. Sorte de ter sido vencido não uma, mas duas vezes por Kent Steele, um homem que ele odiava, detestava, com todas as forças possíveis de seu ser.
Eu aguento.
Antes de sair do quarto, Elena agradeceu aos dois oficiais em alemão e prometeu levar-lhes café quando voltasse mais tarde. Depois que ela foi embora, retomaram o posto do lado de fora de sua porta, que estava sempre aberta, e retomaram a conversa, algo sobre um recente jogo de futebol.
Rais era bastante versado em alemão, mas as particularidades do dialeto suíço-alemão e a velocidade com que falavam tornava o entendimento confuso, às vezes. Os oficiais do turno diurno geralmente conversavam em inglês, e foi assim que ele recebeu muitas de suas notícias sobre os acontecimentos do lado de fora do seu quarto de hospital.
Ambos eram membros do Escritório Federal de Polícia da Suíça, que exigia que ele tivesse dois guardas em seu quarto o tempo todo, vinte e quatro horas por dia. Eles revezavam em turnos de oito horas, com uma dupla totalmente diferente de guardas às sextas-feiras e ao fim de semana.
Sempre havia dois, sempre; se um policial tivesse que usar o banheiro ou comer alguma coisa, primeiro teria que ligar para chamar um dos guardas de segurança do hospital e aguardar a chegada dele. A maioria dos pacientes em sua condição e com esta recuperação provavelmente teria sido transferida para um centro de trauma de nível inferior, mas Rais permaneceu no hospital. Era uma instalação mais segura, com suas unidades trancadas e guardas armados.
Sempre havia dois. Sempre. E Rais havia determinado que isso poderia funcionar a seu favor.
Teve muito tempo para planejar sua fuga, especialmente nos últimos dias, quando os níveis de medicação diminuíram e ele pôde pensar com lucidez. Passou por vários cenários em sua cabeça, vários e vários. Memorizou horários e interceptou conversas. Não demoraria muito para que o dispensassem – uma questão de dias, no máximo.
Tinha que agir, e decidiu que faria isso hoje à noite.
Seus guardas se tornaram complacentes ao longo das semanas de sentinela do lado de fora de sua porta. Eles o chamavam de —terrorista, e sabiam que era um assassino, mas além do incidente com o Dr. Gerber alguns dias antes, Rais não tinha feito nada além de ficar em silêncio, quase imóvel, e permitir que a equipe cumprisse suas obrigações. Se ninguém estava na sala com ele, os guardas mal prestavam atenção, a não ser ocasionalmente olhavam para ele.
Não tentou morder o médico por maldade ou malícia, mas por necessidade. Gerber estivera debruçado sobre ele, inspecionando a ferida em seu braço, onde cortara a marca de Amun – e o bolso do jaleco branco do médico roçara os dedos da mão algemada de Rais. Ele pulou, estalando as mandíbulas, e o médico deu um pulo para trás assustado quando os dentes roçaram seu pescoço.
E uma caneta-tinteiro permaneceu firme no punho de Rais.
Um dos oficiais de plantão lhe dera um duro soco no rosto e, no momento em que o golpe o acertou, Rais enfiou a caneta sob os lençóis, colocando-a sob a coxa esquerda. Ali ficou por três dias, escondida sob os lençóis, até a noite anterior. Ele havia tirado o objeto enquanto os guardas conversavam no corredor.
Com uma das mãos, incapaz de ver o que estava fazendo, separou as duas metades da caneta e retirou o cartucho, trabalhando devagar e com firmeza para que a tinta não se derramasse. A caneta era de ponta de ouro de estilo clássico. Ele colocou a metade de volta sob o lençol. A metade de trás tinha um clipe de bolso de ouro, que ele cuidadosamente ergueu e afastou com o polegar até que se soltasse.
A algema em seu pulso esquerdo permitia um pouco menos de 30 centímetros de mobilidade para seu braço, mas se esticasse a mão até o limite, poderia alcançar os primeiros centímetros do suporte da cabeceira. A mesa era simples, de tábuas de madeira lisa, mas a parte de baixo era áspera como uma lixa.




