Romancistas Essenciais - Raul Pompéia

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Entretinha-me a espiar os companheiros, quando o professor pronunciou o meu nome. Fiquei tão pálido que Mânlio sorriu e perguntou-me, brando, se queria ir à pedra. Precisava examinar-me.
De pé, vexadíssimo, senti brumar-se-me a vista, numa fumaça de vertigem. Adivinhei sobre mim o olhar visguento do Sanches, o olhar odioso e timorato do Cruz, os óculos azuis do Rebelo, o nariz do Nascimento, virando devagar como um leme; esperei a seta do Carlos, o quinau do Maurílio, ameaçador, fazendo cócegas ao teto, com o dedo feroz; respirei no ambiente adverso da maldita hora, perfumado pela emanação acre das resinas do arvoredo próximo, uma conspiração contra mim da aula inteira, desde as bajulações de Negrão até à maldade violenta do Álvares. Cambaleei até à pedra. O professor interrogou-me; não sei se respondi. Apossou-se-me do espírito um pavor estranho. Acovardou-me o terror supremo das exibições, imaginando em roda a ironia má de todos aqueles rostos desconhecidos. Amparei-me à tábua negra, para não cair; fugia-me o solo aos pés, com a noção do momento; envolveu-me a escuridão dos desmaios, vergonha eterna! liquidando-se a última energia... pela melhor das maneiras piores de liquidar-se uma energia.
Do que se passou depois, não tenho idéia. A perturbação levou-me a consciência das coisas. Lembro-me que me achei com o Rebelo, na rouparia, e o Rebelo animava-me com um esforço de bondade sincero e comovedor.
Rebelo retirou-se e eu, em camisa, acabrunhado, amargando o meu desastre, enquanto o roupeiro procurava o gavetão 54, fiquei a considerar a diferença daquela situação para o ideal de cavalaria com que sonhara assombrar o Ateneu.
Como tardava o criado, apanhei aborrecido um folheto que ali estava à mesa dos assentos, entradas de enxoval, registros de lavanderia. Curioso folheto, versos e estampas... Fechei-o convulsamente com o arrependimento de uma curiosidade perversa. Estranho folheto! Abri-o de novo. Ardia-me à face inexplicável incêndio de pudor, constrangia-me a garganta esquisito aperto de náusea. Escravizava-me, porém, a sedução da novidade. Olhei para os lados com um gesto de culpado; não sei que instinto me acordava um sobressalto de remorso. Um simples papel, entretanto, borrado na tiragem rápida dos delitos de imprensa. Arrostei-o. O roupeiro veio interromper-me. "Larga daí! disse com brutalidade, isso não é para menino!" E retirou o livrinho.
Esta impressão viva de surpresa curou-me da lembrança do meu triste episódio, crescendo na imaginação como as visões, absorvendo-me as idéias. Zumbia-me aos ouvidos a palavra aterrada de Aristarco... Sim, devia ser isto: um entravamento obscuro de formas despidas, roupas abertas, um turbilhão de frades bêbados, deslocados ao capricho de todas as deformidades de um monstruoso desenho, tocando-se, saltando a sarabanda diabólica sem fim, no empastado negrume da tinta do prelo; aqui e ali, o raio branco de uma falha, fulminando o espetáculo e a gravura, como o estigma complementar do acaso.
A rouparia ocupava grande parte do subchão do imenso edifício, entre o vigamento do soalho e a terra cimentada. Outra parte era destinada aos lavatórios, centenas de bacias, ao longo das paredes e pouco acima num friso de madeira os copos e as escovas de dentes. Terceiro compartimento, além destes, acomodava o arsenal dos aparelhos ginásticos e o dormitório da criadagem. Da rouparia para o recreio central atravessava-se obliquamente o saguão das bacias. Logo a sair ao pátio encontrei o benévolo Rebelo, que me esperava. Insistiu com um requinte importuno de complacência sobre o meu incidente, desculpando-me, explicando-me, absolvendo-me; tornou-se insuportável. Para mudar de conversa, pedi informações acerca do nosso professor. Deu-mas ótimas, nem outras daria um aluno exemplar como ele. Nenhum mestre é mau para o bom discípulo, afirmava uma das máximas da parede.
Era hora de descanso; passeávamos, conversando. Falamos dos colegas. Vi então, de dentro da brandura patriarcal do Rebelo, descascar-se uma espécie de inesperado Tersito, produzindo injúrias e maldições. "Uma corja! Não imagina, meu caro Sérgio. Conte como uma desgraça ter de viver com esta gente." E esbeiçou um lábio sarcástico para os rapazes que passavam. "Ai vão as carinhas sonsas, generosa mocidade... Uns perversos! Têm mais pecados na consciência que um confessor no ouvido; uma mentira em cada dente, um vicio em cada polegada de pele. Fiem-se neles. São servis, traidores, brutais, adulões. Vão juntos. Pensa-se que são amigos... Sócios de bandalheira! Fuja deles, fuja deles. Cheiram a corrupção, empestam de longe. Corja de hipócritas! Imorais! Cada dia de vida tem-lhes vergonha da véspera. Mas você é criança; não digo tudo o que vale a generosa mocidade. Com eles mesmos há de aprender o que são... Aquele é o Malheiro, um grande em ginástica. Entrou graúdo, trazendo para cá os bons costumes de quanto colégio por ai. O pai é oficial. Cresceu num quartel no meio da chacota das praças. Forte como um touro, todos o temem, muitos o cercam, os inspetores não podem com ele; o diretor respeita-o; faz-se a vista larga para os seus abusos... Este que passou por nós, olhando muito, é o Cândido, com aqueles modos de mulher, aquele arzinho de quem saiu da cama, com preguiça nos olhos... Este sujeito... Há de ser seu conhecido. Mas faço exceções: ali vem o Ribas, está vendo? feio, coitadinho! como tudo, mas uma pérola. É a mansidão em pessoa. Primeira voz do Orfeão, uma vozinha de moça que o diretor adora. É estudioso e protegido. Faz a vida cantando como os serafins. Uma pérola!"
— Ali está um de joelhos...
— De joelhos... Não há perguntar; é o Franco. Uma alma penada. Hoje é o primeiro dia, ali está de joelhos o Franco. Assim atravessa as semanas, os meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça. O diretor chama-lhe cão, diz que tem calos na cara. Se não tivesse calos no joelho, não haveria canto do Ateneu que ele não marcasse com o sangue de uma penitência. O pai é de Mato Grosso; mandou-o para aqui com uma carta em que o recomendava como incorrigível, pedindo severidade. O correspondente envia de tempos a tempos um caixeiro que faz os pagamentos e deixa lembranças. Não sai nunca... Afastemo-nos que aí vem um grupo de gaiatos.
Um tropel de rapazes atravessou-nos a frente, provocando-me com surriadas.
"Viu aquele da frente, que gritou calouro? Se eu dissesse o que se conta dele... aqueles olhinhos úmidos de Senhora das Dores... Olhe; um conselho; faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se.
"Isto é uma multidão; é preciso força de cotovelos para romper. Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo de longe; mas vejo. Não pode imaginar. Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a melhor das vidas, com o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso, estão perdidos... Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores."
Ia por diante Rebelo com os extraordinários avisos, quando senti puxarem-me a blusa. Quase cai. Voltei-me; vi a distância uma cara amarela, de gordura balofa, olhos vesgos sem pestanas, virada para mim, esgarçando a boca em careta de riso cínico. Um sujeito evidentemente mais forte do que eu. Não obstante apanhei com raiva um pedaço de telha e arremessei O tratante livrou-se, injuriando-me com uma gargalhada, e sumiu-se. "Muito bem", aplaudiu Rebelo. E à pergunta que fiz, informou: aquele desagradável rapaz era o Barbalho, que havia de ser um dia preso como gatuno de jóias, nosso companheiro da aula primária, do número dos esquecidos nos bancos do fundo.
O Professor Mânlio teve a bondade de adiar o meu exame, e, para salvar-me das conseqüências do escárnio do desastrado incidente da primeira aula, obsequiou-me na seguinte com as melhores palavras de animação. Os rapazes foram generosos. Maurílio, acariciou-me a cabeça mimosamente, provando que sabia ser bom o dedinho implacável dos argumentos. Só o amarelo dos olhos vesgos teimava em fazer gaifonas à socapa.
Depois do jantar não tornei a ver o Rebelo. Como freqüentava algumas aulas extraordinárias do curso superior, recolhia-se a certas horas para as salas de cima.
A sala do Professor Mânlio era ao nível do pátio, em pavilhão independente do edifício principal, com duas outras do curso primário, o alojamento da banda de música e o salão suplementar de recreio, vantajoso em dias de chuva. Formando ângulo reto com esta casa, uma extensa construção de tijolo e tábuas pintadas, sala geral do estudo no pavimento térreo e dormitório em cima, concorria para fechar metade do quadrilátero do pátio, que o grande edifício completava, estendendo-se em duas alas, como os braços da reclusão severa. No fundo desta caixa desmedida de paredes, dilatava-se um areal claro, estéril, insípido como a alegria obrigatória, algumas árvores de cambucá mostravam, em roda, a folhagem fixa, com o verdor morto das palmas de igreja, alourada a esmo da senilidade precoce dos ramos que sofrem, como se não coubesse a vegetação no internato; a um canto, esgalgado cipreste subia até às goteiras, tentando fugir pelos telhados.
Sem o Rebelo, achei-me ai como perdido, em meio dos rapazes. Os conhecidos da aula desapareciam no tumulto que as salas todas despejavam.
Nem um só de quem me pudesse aproximar. Rente com a parede, para que me não dessem atenção, insinuei-me até o lugar donde o inspetor Silvino, um grande magro, de avultado nariz e suíças dilaceradas, olhar miado e vivo como chispas, em órbitas de antro, fiscalizava o recreio, graduando a folgança, à mercê de um temível canhenho. Sentava-se à entrada do portão do lavatório. Um pouco além da cadeira do Silvino, fiquei a salvo. Do seguro retiro avistava, no terreiro, fresco das largas sombras da hora, o movimento dos colegas.
Num ponto e noutro formavam-se pequenos sarilhos, condensando irregularmente a dispersão dos alunos. Eram os pobres novatos que os veteranos sovavam à cacholeta, fraternalmente.
Perto de mim vi o Franco. Sempre de penitência; em pé, cara contra a parede. Como Silvino dava-lhe as costas, divertia-se a pegar moscas para arrancar a cabeça e ver morrer o bichinho na palma da mão. Perguntei-lhe por que estava de castigo. Sem olhar, de mau modo: "Lá sei! disse ele. Porque me mandaram". E continuou a pegar as moscas. Franco era um rapazola de quatorze anos, raquítico, de olhos pasmados, face lívida, pálpebras pisadas. À fronte, com a expressão vaga dos olhos e obliqüidade dolorida dos supercílios, pousava-lhe uma névoa de aflição e paciência, como se vê no Flos sanctorum. A parte inferior do semblante rebelava-se; um canto dos lábios franzia-se em contração constante de odiento desprezo. Franco não ria nunca. Sorria apenas, assistindo a uma briga séria, interessando-se pelo desenlace como um apostador de rinha, enfurecendo-se quando apartavam. Uma queda alegrava-o, principalmente perigosa. Vivia isolado no circulo da excomunhão com que o diretor, invariavelmente, o fulminava todas as manhãs, lendo no refeitório perante o colégio as notas da véspera.
Os professores já sabiam. À nota do Franco, sempre má, devia seguir-se especial comentário deprimente, que a opinião esperava e ouvia com delícia, fartando-se de desprezar. Nenhum de nós como ele! E o zelo do mestre cada dia retemperava o velho anátema. Não convinha expulsar. Uma coisa destas aproveita-se como um bibelô do ensino intuitivo, explora-se como a miséria do hilota, para a lição fecunda do asco. A própria indiferença repugnante da vitima é útil.
Três anos havia que o infeliz, num suplício de pequeninas humilhações cruéis, agachado, abatido, esmagado, sob o peso das virtudes alheias mais que das próprias culpas, ali estava, — cariátide forçada no edifício de moralização do Ateneu, exemplar perfeito de depravação oferecido ao horror santo dos puros.
Várias vezes nessa tarde fui assaltado pela chacota impertinente do Barbalho. O endemoninhado caolho puxava-me a roupa, esbarrava-me encontrões e fugia com grandes risadas falsas, ou parava-me de súbito em frente, e revestindo-se de quanta seriedade lhe era suscetível o açafrão da cara, perguntava: "Mudas as calças?" Um inferno. Até que afinal o meu desespero estourou.
Foi à noite, pouco antes da ceia. Estávamos a um canto mal iluminado do pátio, quase sós. O biltre reconheceu-me e arreganhou uma inexprimível interjeição de mofa. Não esperei por mais. Estampei-lhe uma bofetada. Meio segundo depois, rolávamos na poeira, engalfinhados como feras. Uma luta rápida. Avisaram-nos que vinha o Silvino. Barbalho evadiu-se. Eu verifiquei que tinha o peito da blusa coberto de sangue que me corria do nariz.
Uma hora mais tarde, na cama de ferro do salão azul, compenetrado da tristeza de hospital dos dormitórios, fundos na sombra do gás mortiço, trincando a colcha branca, eu meditava o retrospecto do meu dia.
Era assim o colégio. Que fazer da matalotagem dos meus planos?
Onde meter a máquina dos meus ideais naquele mundo de brutalidade, que me intimidava com os obscuros detalhes e as perspectivas informes, escapando à investigação da minha inexperiência? Qual o meu destino, naquela sociedade que o Rebelo descrevera horrorizado, com as meias frases de mistério, suscitando temores indefinidos, recomendando energia, como se coleguismo fosse hostilidade? De que modo alinhar a norma generosa e sobranceira de proceder com a obsessão pertinaz do Barbalho? Inutilmente buscara reconhecer no rosto dos rapazes o nobre aspecto da solenidade dos prêmios, dando-me idéia da legião dos soldados do trabalho, que fraternizavam no empenho comum, unidos pelo coração e pela vantagem do coletivo esforço. Individualizados na debandada do receio, com as observações ainda mais da critica do Rebelo, bem diverso sentimento inspiravam-me. A reação do contraste induzia-me a um conceito de repugnância que o hábito havia de esmorecer, que me tirava lágrimas àquela noite. Ao mesmo tempo oprimia-me o pressentimento da solidão moral, fazendo adivinhar que as preocupações mínimas e as concomitantes surpresas inconfessáveis dariam pouco para as efusões de alívio, a que corresponde o conselho, a consolação.
Nada de protetor, dissera Rebelo. Era o ermo. E, na solidão, conspiradas, as adversidades de toda a espécie, falsidade traiçoeira dos afetos, perseguição da malevolência, espionagem da vigilância; por cima de tudo, céu de trovões sobre os desalentos, a fúria tonante de Júpiter-diretor, o tremendo Aristarco dos momentos graves.
Lembranças da família desviaram-me o curso às reflexões. Não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro sono, nem a oração, tão longe nesse momento, que me protegia à noite como um dossel de amor; o abandono apenas das crianças sem lar que os asilos da miséria recolhem.
A convicção do meu triste infortúnio lentamente, suavemente, aniquilou-me num conforto de prostração e eu dormi.
Pela noite adentro, comparsas de pesadelo, perseguiram-me as imagens várias do atribulado dia; a pegajosa ternura do Sanches, a cara amarela do Barbalho, a expressão de tortura do Franco, os frades descompostos do roupeiro. Sonhei mesmo em regra. Eu era o Franco. A minha aula, o colégio inteiro, mil colégios, arrebatados, num pé-de-vento, voavam léguas afora por uma planície sem termo. Gritavam todos, urravam a sabatina de tatuadas com um entusiasmo de turbilhão. O pó crescia em nuvens do solo; a massa confusa ouriçava-se de gestos, gestos de galho sem folhas em tormenta agoniada de inverno; sobre a floresta dos braços, gesto mais alto, gesto vencedor, a mão magra do Maurílio, crescida, enorme, preta, torcendo, destorcendo os dedos sôfregos, convulsionados da histeria do quinau... E eu caia, único vencido! E o tropel, de volta, vinha sobre mim, todos sobre mim! sopeavam-me, calcavam-me, pesados, carregando prêmios, prêmios aos cestos!
A sineta, tocando a despertar, livrou-me da angústia. Cinco horas da manhã.
III
Se em pequeno, movido por um vislumbre de luminosa prudência, enquanto aplicavam-se os outros à peteca, eu me houvesse entregado ao manso labor de fabricar documentos autobiográficos, para a oportuna confecção de mais uma infância célebre, certo não registraria, entre os meus episódios de predestinado, o caso banal da natação, de conseqüências, entretanto, para mim, e origem de dissabores como jamais encontrei tão amargos.
Natação chamava-se o banheiro, construído num terreno das dependências do Ateneu, vasta toalha d'água ao rés da terra, trinta metros sobre cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada por grandes torneiras de chave livre. O fundo, invisível, de ladrilho, oferecia uma inclinação, baixando gradualmente de um extremo para outro. Acusava-se ainda mais esta diferença de profundidade por dois degraus convenientemente dispostos para que tomassem pé as crianças como os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto a água cobria um homem.
Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e marco e do fim do ano, havia ai dois banhos por dia. E cada banho era uma festa, naquela água gorda, salobra da transpiração lavada das turmas precedentes, que as dimensões do tanque impediam a devida renovação; turbulento debate de corpos nus, estreitamente cingidos no calção de malha rajado a cores, enleando-se os rapazes como lampreias, uns imergindo, reaparecendo outros, olhos injetados, cabelos a escorrer pela cara, vergões na pele de involuntárias unhadas dos companheiros, entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de terror; os menores agrupados no raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos, se algum mais forte chegava.
Dos maiores, alguns havia que faziam medo realmente, singrando a braçadas, levando a ombro a resistência d'água; outros se precipitavam cabeça para baixo, volteando os pés no ar como cauda de peixe, prancheando sem ver a quem. E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de ressaca se embarcavam e iam transbordar pelas imediações do banheiro alagando tudo.
Ao longo do tanque, corria o muro divisório, além do qual ficava a chácara particular do diretor. A distância, viam-se as janelas de uma parte da casa, onde às vezes eram recolhidos os estudantes enfermos, fechadas sempre a venezianas verdes.
Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de bambus e ramos de hera, vinha Ângela, a canarina, ver os banhos da tarde. Lançava pedrinhas aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam, buscando o seixo. Ângela, torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria perdidamente um grande riso, desabrochado em carola de flor através dos dentes alvos.
Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem movimentada.
Procurei o recanto dos menores. Determinava a disciplina a divisão dos banhistas em três turmas, conforme as classes de idade. Mas, o descuido da fiscalização permitia que as turmas se confundissem e o inspetor de serviço, com a varinha destinada aos retardatários, vigiava, afastado, de sorte que ficavam expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos que as espadanas d'água acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um impulso violento cai de costas; a água abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso; e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando alguém me amparou. Um grande tomou-me ao ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei algum tempo para me inteirar do que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. "Ia afogar-se!" disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito. "Perversos!" observou-me o colega com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores, desvelando-se em solicitudes por tranqüilizar-me. Tive depois motivo, para crer que o perverso e a peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço.
Mas a conseqüência imediata do fato foi que forcei a repugnância que o Sanches me causava e me fiz todo gratidão para com ele e intima amizade. Curiosa e acidentada tinha de ser essa minha aventura de apego e confiança.
No Ateneu formávamos a dois para tudo. Para os exercícios ginásticos, para a entrada na capela, no refeitório, nas aulas, para a saudação ao anjo da guarda, ao meio-dia, para a distribuição do pão seco depois do canto. Por amor da regularidade da organização militar, repartiam-se as três centenas de alunos em grupos de trinta, sob o direto comando de um decurião ou vigilante. Os vigilantes eram escolhidos por seleção de aristocracia, asseverava Aristarco. Vigilante era o Malheiro, o herói do trapézio; vigilante era o Ribas, a melhor vocalização do Orfeão; vigilante era o Mata, mirrado, corcundinha, de espinha quebrada, apelidado o mascate, melífluo no trato, nunca punido ninguém sabia por quê, reputação de excelente porque ninguém se lembrava de verificar, que, entretanto, Rebelo apontava como chefe da policia secreta do diretor; vigilante o Saulo, que tinha três distinções na instrução pública; vigilante Rômulo, mestre cook, por alcunha, uma besta, grandalhão, último na ginástica pela corpulência bamba, último nas aulas, dispensado do Orfeão pela garganta rachada de requinta velha, mas exercendo no colégio, por exceção de saliência na largura chata da sua incapacidade, as complexas e delicadas funções de zabumba da banda. Não sei se este jeito particular para o bombo, fórmula musical do anúncio, não sei se uma célebre herança que Rômulo esperava de afortunados parentes, verdade é que entre todos fora Rômulo apurado por Aristarco para o invejável privilégio de seu futuro genro.
Diversos outros vigilantes contavam-se como estes, eleitos por um critério que dava ensejo a que o escolhido por valentia à barra fixa representava no estudo um papel contristador; vice-versa, outro, como Ribas, exemplar nas aulas, magricela e esgotado, mal podia ao trapézio vacilar a acrobacia simplificada do prumo.
Sanches era também vigilante.
Estes oficiais inferiores da milícia da casa faziam-se tiranetes por delegação da suprema ditadura. Armados de sabres de pau com guardas de couro, tomavam a sério a investidura do mando e eram em geral de uma ferocidade adorável. Os sabres puniam sumariamente as infrações da disciplina na forma: duas palavras ao cerra-fila, perna frouxa, desvio notável do alinhamento. Regime siberiano, como se vê, do que resultava que os vigilantes eram altamente conceituados.
No caso particular da nossa fortuita aproximação, não podia deixar de influir consideravelmente a bela importância colegial do vigilante Sanches. Mas outras circunstâncias concertaram-se para determinar a nova feição das minhas disposições conforme se acentuou depois do incidente do banho.
Já me era lícito julgar iniciado na convivência intima da escola. Chamado por Mânlio a provas, consegui agradar, conquistando uma aura que me devia por algum tempo favorecer. Encontrei o Barbalho. Tinha a face marcada pelas minhas unhas; evitou-me. No recreio cometi a injustiça de ir deixando o Rebelo. Também o amável camarada tinha na boca um mau cheiro que lhe prejudicava a pureza dos conselhos; demais, falava prendendo a gente com dedos de torquês e soltando os aforismos a queima-roupa. Por seu lado o venerando colega correspondeu ao movimento massando-se comigo, e amuando. Durante as aulas, em que nos sentávamos perto um do outro, absorvia-se em sua desesperada atenção e era como se estivesse a muitas milhas. Se, todavia, por imprescindível necessidade tinha de me falar, então, dirigia-me a palavra com a habitual afabilidade de jovem cura.
Estava aclimado, mas eu me aclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere.
Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de animo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro. Premia-me a força das coisas; senti-me acovardado. Perdeu-se a lição viril de Rebelo: prescindir de protetores. Eu desejei um protetor, alguém que me valesse, naquele meio hostil e desconhecido, e um valimento direto mais forte do que palavras.