Romancistas Essenciais - Raul Pompéia

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Embaixo das árvores era já noite espessa. Demos uma volta no escuro acompanhando a curva de uma alameda. O Franco ia adiante calado, andando leve e rápido como uma sombra no ar. Eu o seguia irresistivelmente como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. Que ia fazer o Franco? Aonde ia ele? Chegamos ao capinzal, a um de cujos lados extremos ficava a natação. Logo ao portão de ingresso nesse terreno, havia um depósito de lixo, onde os jardineiros acumulavam as varreduras da chácara, negrejando putrefatas, virando estrume ao tempo.
Franco deteve se junto ao monturo. Sempre em silêncio e ativamente, como para não perder aquele raro estimulo de vontade que o impelia, foi examinando o lixo com o pé.
A um canto, entre tocos de bambu, tiniram garrafas. Franco abaixou se e como em ação mecânica, sem se voltar, apanhou uma garrafa, outra e outra; foi me dando, sobraçou ainda outras e prosseguimos, o Franco adiante, leve e rápido, sempre no seu andar de sombra, como suspenso e difuso na névoa quase lúcida do campo aberto.
Atravessamos o capinzal quase sumidos entre as altas bandas de capim d'angola, cuja escura vastidão se constelava de vaga lumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor dos sapos. Diante da natação o Franco parou e me fez parar. "A minha vingança!" disse entre dentes, e me indicou a toalha d'água do grande tanque. A massa liquida, imóvel, na calma da noite, tinha o aspecto de lustrosa calçada de azeviche; algumas estrelas repetiam se na superfície negra com uma nitidez perfeita.
Com o mesmo modo atarefado de todo aquele singular empreendimento, o Franco acercou se de mim, tirou me as garrafas que me dera e desapareceu da minha vista.
Eu ouvi que ele quebrava as garrafas uma por uma. Daí pouco reaparecia, trazendo as abas da blusa em regaço. E começou a lançar então com o maior sossego ao tanque, para todos os lados, aqui, ali, dispersamente, como semeando, as lascas do vidro que partira. Um breve rumor de mergulho borbulhava à flor d'água, abrindo se em círculos concêntricos os reflexos do céu. Eu vi muitas vezes contra o albor mais claro do muro fronteiro, passando, repassando, a sombra do sinistro semeador.
"A minha vingança!" repetiu me ainda o Franco. "Para o sangue, sangue, acrescentou com o risinho seco. Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me vingo!"
Ao falar mostrava me o lenço que enxugara o sangue do golpe à testa.
O justo terror da aventura, em lugar vedado, por aquelas horas, só me assaltou quando, a pular o muro do pátio, fui cair entre as mãos do Silvino. Nos aparos da alhada, mal vi o Franco seguro pelo pescoço, como um ladrão em flagrante.
Em presença do diretor, no escritório inquisitorial improvisei uma mentira. Fôramos colher sapotis, afirmei explicando à tremenda argüição a estranheza da surtida. O diretor marcou a pena de oito páginas. Franco, que andava com um déficit de vinte pelo menos, teve de acrescentar mais estas ao passivo insolvável. Pela vergonha da tentativa de furto e no sistema dos castigos morais, adicionou se a observação suplementar: passaríamos, os delinqüentes, no outro dia, as horas do almoço e do jantar, ao refeitório, de pé carregando em cada mão quantos sapotis coubessem.
Todo o requinte de punição não me deu cuidado; pelo contrário, estava nas condições do meu programa de pequeno mártir ad majorem gloriam. Ao deixar o escritório outra coisa preocupava me. Ardia de remorsos; tinha cacos de garrafa na consciência. A armadilha sanguinária de Franco obsedava me como um delito meu.
Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava me o remorso como uma febre; aterrava me a idéia do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.
A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava me no crânio como uma inchação de meninges. Dar se ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o permitira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em suma, de justa desforra...
Ergui me da cama, e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal estar, errei pelos salões adormecidos.
Os colegas, tranqüilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando se depois por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de vôo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar de fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava se igual sobre as camas. doçura dispersa de um olhar de mãe.
Que venturosa segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensangüentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!
Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa Rosália; beijei a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitórios, devagarinho, que me não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a um dos ângulos do salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometer. Dentro do biombo, tossiram; parei um momento; curou se a tosse; prossegui.
Desci ao primeiro andar do edifício; entrei na capela.
A capela em trevas, de um negrume absoluto de merinó preto. A escuridão dava lhe uma amplitude de subterrâneo, misteriosamente sentida no espaço. Não tive medo. Fui até ao altar. Tropecei no estrado. Ajoelhei me no chão e descansei a testa nos braços a um dos ângulos do estrado do oratório. Rezei.
Na qualidade de mau estudante não sabia até ao fim nenhuma oração. Rogava por minha conta, improvisando súplicas, veementes, angustiosas, que deviam forçar a ombro a porta de São Pedro. Implorava de Deus diretamente, sem o intermediário empenho da minha padroeira. Até que, não posso dizer como, adormeci.
Uma palmada acordou me. Era dia. Ergui me vexado, de camisola, diante do Margal e de uma porção de colegas que miravam. "É sonâmbulo, é sonâmbulo", explicavam.
Esta saída dispensava me de dizer a que fora ali; encampei a explicação, concordando. "Que horas são?" perguntei. "Seis horas, responderam. Chegamos agora mesmo do banho." Tinham os cabelos empastados sobre os olhos. "E os cacos?!" gritei espavorido. Examinei os pés dos companheiros. Nas chinelas com que desciam ao banho não via sangue! Esclarecia se: houvera ordem de banhos de chuva no competente banheiro, alojado em um dos cômodos baixos do Ateneu, pelo motivo de ter servido seis vezes a água da natação. Graças ao Senhor! Vinha me do céu esta solução de águas sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou se me a alma em ditoso alívio.
À minha interjeição explosiva de cacos, os colegas supuseram tontura de sono. Não assim o inspetor, que me chamou a indagar. Nova mentira: durante a escapada dos sapotis, uma garrafa, que arremessei de mau jeito, fizera se em cacos contra o muro, sobre o tanque. Providenciou se. O criado encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, chamou atenção para o número dos fragmentos; tão extraordinária era a hipótese da intenção perversa que não pegou.
No mesmo dia estive com o Franco, durante os recreios, a completar a pena. Não me disse palavra acerca da decepção da sua vingança. Julgando se comprometido, concentrava se na insensibilidade de carapaça que o defendia, esperando tudo, a minha delação, uma trovoada de doestos, a cafua, um acréscimo ao déficit permanente da divida penal. Aborrecia se, porém, da necessidade de ser punido por um fiasco de tentativa.
Quanto ao requinte da exposição no refeitório, mãos cheias de sapotis, não houve meio de obrigar me Aristarco. Concordara em ficar de pé; não era pouco. Franco naturalmente submeteu se e lá esteve, braços abertos, a fazer de fruteira no interesse do sistema das punições morais. Tanto melhor para o sistema.
À vista da relutância, calculou se em páginas de escrita quanto podiam valer dois punhados de sapotis; redução difícil, que a justiça colegial alcançou matematicamente, pronunciando uma condenação que me daria que fazer até mais de meia noite.
Este rasgo de vigor mentia ao meu religioso papel de submissão e sofrimento. Foi o repentino prenúncio de próxima reforma no interior espiritual. E, como as evoluções da vontade sabem extrair de qualquer fato a hermenêutica do determinismo, deu se imediatamente uma ocorrência que ponderou muito na transformação.
De noite, novamente ao lado do Franco, a fatigar me na tarefa das páginas, tive que ficar até tarde numa das salas do primeiro andar. Pelas dez e meia, o diretor, antes de sair para casa, veio ver nos. "Ainda escrevem... estes peraltas?..." disse nos de enorme altura, à guisa de boas noites, e desapareceu confiando nos ao amável João Numa, bácoro, inspetor das salas de cima. Na sua qualidade de gorducho, o João não era diligente. Apenas viu parar Aristarco, trancou a última porta do Ateneu e foi dormir.
Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de sono que mal podia erguer a cabeça. De uma vez que cedi ao cansaço fui despertado por sentir que me alisavam a mão. Adormecera sobre o braço direito contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o braço esquerdo para o banco. Um instante depois estava fora da sala, de um pulo, como se tivesse reconhecido em sonhos que o Franco era um monstro.
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