Uma Jóia Para Realezas

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“Ah, já passamos dessa fase,” disse Siobhan. “Se eu soubesse que você me daria tanto trabalho, nunca teria te tornado minha aprendiz em primeiro lugar, mas algumas coisas não conseguem ser previstas, até mesmo por mim.”
“Se eu dou tanto trabalho assim, porque não me soltar?” tentou Kate. Mesmo enquanto dizia, ela sabia que não funcionaria assim. Orgulho, se nada mais, levaria Siobhan a fazer mais.
“Te soltar?” disse Siobhan. “Você sabe o que fez, quando fincou a espada forjada com meu próprio feitiço na minha fonte? Quando você partiu nossa ligação, sem se preocupar com as consequências?”
“Você não me deu escolha,” disse Kate. “Você—”
“Você destruiu o cerne do meu poder,” disse Siobhan. “Tanto poder, aniquilado em um instante. Eu mal tive forças para me agarrar a vida. Mas eu tenho meu conhecimento, e meios de sobreviver.”
Ela gesticulou, e a cena por trás da bolha se transformou. Agora Kate reconhecia o interior da cabana de Haxa, toda esculpida com feitiços e figuras. A bruxa feiticeira estava sentada em uma cadeira, observando o corpo imóvel de Kate. Ela claramente havia arrastado ou carregado Kate da área de ritual no fundo da caverna.
“Minha fonte me sustentou,” disse Siobhan. “Agora eu preciso de um recipiente para fazer o mesmo. E por acaso tem um convenientemente vazio aqui.”
“Não!” exclamou Kate, socando a bolha novamente.
“Ah, não se preocupe,” disse Siobhan. “Eu não vou ficar lá muito tempo. Só o tempo suficiente para matar sua irmã, eu acho.”
Kate arrepiou só de pensar. “Por quê? Por que você quer a Sophia morta? Só para me machucar? Me mate ao invés. Por favor.”
Siobhan ponderou. “Você realmente daria sua vida por ela, não é? Você mataria por ela. Você morreria por ela. E agora nada disso é suficiente.”
“Por favor, Siobhan, estou te implorando!” clamou Kate.
“Se você não queria fazer isso, deveria ter feito o que eu mandei,” disse Siobhan. “Com sua ajuda, eu poderia ter colocado as coisas em ordem de modo que minha casa estaria segura para sempre. E eu teria poder. Agora, você tomou isso de mim, e eu preciso viver.”
Kate ainda não entendia por que isso significava que Sophia tinha que morrer.
“Viva em meu corpo então,” disse ela. “Mas não machuque Sophia. Você não tem motivo para machucá-la.”
“Eu tenho todos os motivos,” disse Siobhan. “Você acha que me disfarçar como a irmã mais nova de uma governante é suficiente? Você acha que morrer em uma única existência humana é suficiente? Sua irmã carrega uma criança. Uma criança que governará. Eu vou moldá-la antes de nascer. Eu vou mata-la e arrancar a criança de dentro dela. Eu vou toma-la e crescer com ela. Eu vou me tornar tudo o que eu preciso ser.”
“Não,” disse Kate quando percebeu quão horroroso era esse plano. “Não.”
Siobhan riu de um jeito cruel. “Eles matarão seu corpo quando eu matar Sophia,” ela disse. “E você ficará largada lá, entre mundos. Eu espero que você aproveite sua liberdade, aprendiz.”
Ela murmurou algumas palavras e por um momento pareceu que ela tinha desvanecido. Porém, a imagem da cabana de Haxa não desapareceu, e Kate gritou quando viu seu próprio corpo tomar fôlego e acordar.
“Haxa, não, não sou eu!” ela gritou, e tentou enviar a mesma mensagem com seu poder. Nada aconteceu.
Porém, do outro lado daquela fina divisa, muito acontecia. Siobhan suspirou com seu pulmão, abriu seus olhos, e sentou-se com o seu corpo.
“Calma, Kate,” disse Haxa, não se levantando. “Você passou por muita coisa.”
Kate assistiu seu corpo tatear à sua volta hesitante, como se tentando descobrir onde estava. Para Haxa, deve ter parecido como se Kate ainda estivesse desorientada pela sua experiência, mas Kate podia ver que Siobhan estava testando seus braços e pernas, descobrindo o que eles conseguiam fazer.
Ela finalmente se levantou, instavelmente. Seu primeiro passo foi cambaleante, mas seu segundo foi mais confiante. Ela desembainhou a espada de Kate, abanando-a pelo ar como se testando seu equilíbrio. Haxa parecia um pouco preocupada com isso, mas não se retraiu. Ela pensou que era provavelmente algo que Kate faria para testar seu equilíbrio e coordenação.
“Você sabe onde está?” perguntou Haxa.
Siobhan a encarou através dos olhos de Kate. “Sim, eu sei.”
“E você sabe quem eu sou?”
“Você é aquela que se chama de Haxa para esconder seu nome. Você é a guardiã dos feitiços, e não era minha inimiga até você decidir ajudar minha aprendiz.”
De onde ela estava presa, Kate viu a expressão de Haxa mudar para uma de terror.
“Você não é a Kate.”
“Não,” disse Siobhan, “Eu não sou.”
Ela se moveu então, com toda a velocidade e força do corpo de Kate, atacando com sua espada de modo que em um piscar de olhos ela atravessou o peito de Haxa. A espada projetou-se para o outro lado, atravessando-a.
“O problema com nomes,” disse Siobhan, “é que eles só funcionam quando você tem fôlego para usá-los. Você não deveria ter ficado contra mim, bruxa feiticeira”.
Ela deixou Haxa cair, e então olhou para cima, como se soubesse de onde era o ponto de vista da Kate.
“Ela morreu por sua causa. Sophia morrerá por sua causa. Sua criança, e esse reino, serão meus por sua causa. Eu quero que você pense nisso, Kate. Pense nisso quando a bolha murchar e seus medos te encontrarem.”
Ela balançou uma mão, e a imagem desapareceu. Kate se jogou contra a bolha, tentando chegar até ela, tentando sair dali e encontrar um jeito de impedir Siobhan.
Ela parou quando viu que as coisas em torno dela se transformaram em uma paisagem acinzentada agora que Siobhan não estava mais moldando-a para enganá-la. Havia um brilho fraco prateado à distância que poderia ser o caminho seguro, mas que estava tão longe que poderia muito bem nem estar lá.
Figuras começaram a aparecer pela névoa. Kate reconheceu as faces de pessoas que ela havia matado; freiras e soldados, o mestre de treino do Lorde Cranston e os homens do Mestre dos Corvos. Ela sabia que eram só imagens em vez de fantasmas, mas isso não fez nada para diminuir o medo dentro dela, fazendo sua mão tremer e a espada que carregava parecer inútil.
Gertrude Illiard estava lá novamente, segurando um travesseiro.
“Eu vou ser a primeira,” ela prometeu. “Eu vou te sufocar como você me sufocou, mas você não vai morrer. Não aqui. Não importa o que nós façamos com você, você não morrerá, mesmo se você implorar por isso.”
Kate olhou à sua volta, e cada um deles tinha um tipo de instrumento, quer fosse uma faca ou um chicote, uma espada ou corda para estrangular. Cada um deles parecia ansiar com a necessidade de machuca-la, e Kate sabia que eles cairiam em cima dela sem piedade assim que pudessem.
Ela podia ver o campo desaparecendo agora, se tornando mais translúcido. Kate agarrou firmemente sua espada e se preparou para o que estava por vir.
CAPÍTULO TRÊS
Emeline seguiu Asha, Vincente, e os outros através do pântano além de Strand, segurando o braço de Cora para que não se perdessem na névoa que subia do pântano.
“Nós conseguimos”, disse Emeline. “Encontramos Stonehome”.
“Eu acho que Stonehome nos encontrou,” Cora observou.
Esse era um bom ponto, levando em consideração que os habitantes deste lugar haviam resgatado-as da execução. Emeline ainda se lembrava do calor ardente das piras quando fechava os olhos, o fedor pungente da fumaça. Ela não queria se lembrar.
“Mas também,” disse Cora, “Eu acho que, para encontrar um lugar, você deve conseguir enxergá-lo.”
Eu gosto desse seu animal de estimação, Asha enviou a Emeline. Ela sempre fala tanto assim?
A mulher que parecia ser um dos líderes de Stonehome continuou andando, seu casaco longo arrastando, seu largo chapéu evitando a umidade.
Ela não é meu animal de estimação, Emeline enviou para ela. Ela pensou em dizer isso em voz alta, pela Cora, mas foi por ela que não o fez.
Por que alguém ficaria com uma Normal? Perguntou Asha.
“Ignore a Asha,” disse Vincente, em voz alta. Ele era alto o suficiente para ver tudo por cima delas, mas apesar disso, e do cutelo que carregava, ele parecia o mais amigável dos dois. “Ela tem dificuldade em acreditar que aqueles sem nosso dom possam fazer parte da nossa comunidade. Felizmente, não são todos nós que pensamos assim. Quanto à névoa, é uma de nossas proteções. Aqueles que procuram Stonehome para prejudica-la vagueiam sem acha-la. Eles se perdem.”
“E nós podemos caçar aqueles que vêm para nos machucar,” disse Asha, com um sorriso não muito reconfortante. “Mas, estamos quase lá. A névoa se levantará logo.”
Se levantou, e foi como pisar em uma ilha rodeada pela névoa, a terra se elevando pra além dela em uma grande área que era facilmente maior do que Ashton foi um dia. Não que fosse cheio de casas, como a cidade era. Pelo contrário, a maior parte parecia terras de pastagem, ou terrenos onde as pessoas estavam trabalhando para plantar vegetais. Dentro desse perímetro de terra fértil tinha uma muralha de pedras da altura do ombro de uma pessoa, situada em frente à uma vala de modo que parecia uma estrutura de defesa em vez de somente um marco. Emeline sentiu uma fraca faísca de poder e imaginou se talvez a muralha representasse mais do que parecia.
No interior, havia uma série de casas de pedra e turfa: pequenos chalés com telhados de turfa e relva, casas redondas que pareciam estar lá desde sempre. No centro de tudo havia um círculo de pedras, parecido com os outros na planície, exceto que esse era maior, e cheia de pessoas.
Eles haviam encontrado Stonehome finalmente.
“Venham,” disse Asha, andando rapidamente em direção à Stonehome. “Nós te mostraremos tudo. Eu vou garantir que ninguém confunda vocês com invasores e vos matem.”
Emeline a encarou, e depois olhou para Vincente.
“Ela é sempre assim?” ela perguntou.
“Geralmente ela é pior,” disse Vincente. “Mas ela ajuda a nos proteger. Vamos, vocês duas precisam ver sua nova casa.”
Eles desceram em direção à vila de pedra, os outros seguindo atrás, ou se afastando, correndo aos campos para falar com seus amigos.
“Esse lugar parece muito bonito,” disse Cora. Emeline ficou feliz que Cora pareceu gostar. Ela não tinha certeza do que faria se sua amiga decidisse que Stonehome não era o santuário que ela esperava.
“É mesmo,” concordou Vincente. “Eu não tenho certeza quem o descobriu, mas ele se tornou rapidamente um lugar para pessoas como nós.”
“Aqueles com poderes,” disse Emeline.
Vincente deu de ombros. “Isso é o que a Asha diz. Pessoalmente, eu prefiro pensar que é um lugar para todos os rejeitados. Vocês duas são bem-vindas aqui.”
“Simples assim?” perguntou Cora.
Emeline imaginou que sua suspeita tinha muito a ver com as coisas que elas haviam visto no caminho. Parecia que praticamente toda pessoa que elas haviam encontrado estava determinada a rouba-las, escraviza-las, ou pior. Ela tinha de admitir que talvez ela tenha compartilhado desses desejos, porém as pessoas aqui eram de tantas maneiras parecida com ela. Ela queria poder confiar neles.
“Os poderes de sua amiga fazem dela uma de nós, porém você… você foi uma das contratadas?”
Cora assentiu.
“Eu sei como era,” disse Vincente. “Eu cresci em um lugar onde me diziam que eu deveria pagar pela minha liberdade. A Asha também. Ela pagou por isso com sangue. É por isso que ela é tão cautelosa em relação a quem ela confia.”
Ao ouvir isso, Emeline se pegou pensando em Kate. Ela imaginou o que havia acontecido com a irmã de Sophia. Teria ela conseguido achar Sophia? Estaria ela a caminho de Stonehome também, ou tentando achar Ishjemme para estar com sua irmã? Não tinha como saber, mas Emeline tinha esperança.
Elas desceram até a vila, seguindo Vincente. À primeira vista, parecia uma vila normal, mas conforme ela chegava perto, Emeline conseguia ver as diferenças. Ela conseguia ver as marcas dos feitiços e encantos cravados nas pedras e nas madeiras, ela sentia a pressão de dúzias de pessoas com o dom pra magia no mesmo lugar.
“É tão quieto aqui,” disse Cora.
Podia parecer silencioso para ela, mas para Emeline, o ar parecia vivo com as conversas de pessoas se comunicando de mente a mente. Parecia ser tão comum quanto falar em voz alta aqui, talvez mais ainda.
Haviam outras coisas também. Ela já havia visto o que o curandeiro, Tabor, podia fazer, mas haviam outros usando outros talentos. Um garoto parecia estar brincando com uma bola sem tocar em nada. Um homem estava acendendo fogo, mas parecia não haver qualquer chama. Havia até um ferreiro trabalhando sem fogo, o metal parecendo responder ao seu toque como uma coisa viva.
“Todos temos nossos dons,” disse Vincente. “Nós buscamos informações para podermos ajudar aqueles com poderes a expressa-los o máximo que puderem.”
“Você teria gostado da nossa amiga Sophia,” disse Cora. “Ela parecia ter todo tipo de poder.”
“Indivíduos verdadeiramente poderosos são raros,” disse Vincente. “Os que parecem mais fortes frequentemente são os mais limitados.”
“E mesmo assim você conseguiu mobilizar uma névoa que se espalhou por vários quilômetros,” Emeline ressaltou. Ela sabia que era necessário mais do que um estoque de poder. Muito mais.
“Nós fazemos isso juntos,” disse Vincente. “Se você ficar, você provavelmente contribuirá para isso, Emeline.”
Ele apontou para o círculo no centro da vila, onde algumas pessoas estavam sentadas em pedras. Emeline podia sentir o mover dos poderes lá, mesmo que parecesse que eles não estavam fazendo nada mais extenuante do que ficar encarando. Enquanto ela observava, um deles se levantou, com uma aparência exausta, e outro se moveu para pegar o lugar deste.
Emeline não havia pensado nisso. O mais poderoso deles obteve seu poder canalizando energia de outros lugares. Ela já havia ouvido falar de bruxas que roubavam vidas de outros, e Sophia parecia obter poder da própria terra. Isso até que fazia sentido, considerando quem ela era. Porém, isto… isto era uma vila inteira de pessoas com poderes canalizando-os juntos para se tornarem mais do que a soma das partes. Quanto poder eles conseguiam criar fazendo isso?
“Olha, Cora,” ela disse, apontando. “Eles estão protegendo a vila inteira.”
Cora observou. “Isso… qualquer um consegue fazer isso?”
“Qualquer um com uma faísca de poder,” disse Vincente. “Se alguém normal fosse tentar, ou nada aconteceria, ou…”
“Ou?” perguntou Emeline.
“Sua vida seria sugada. Não é seguro tentar.”
Emeline podia ver o desconforto de Cora ouvindo isso, mas não pareceu durar. Ela estava ocupada observando a vila a sua volta, como se tentando entender como tudo funcionava.
“Venham,” disse Vincente. “Há uma casa vazia por aqui.”
Ele mostrou o caminho até um chalé de pedra que não era muito grande, mas parecia grande o suficiente para as duas. A porta rangeu quando Vincente a abriu, mas Emeline acreditava que isso poderia ser consertado. Se ela conseguia aprender a guiar um barco ou um vagão, ela conseguia aprender a consertar uma porta.
“O que nós faremos aqui?” perguntou Cora.
Vincente sorriu. “Vocês vão viver aqui. Nossas fazendas produzem comida suficiente, e nós dividimos com qualquer um que ajude com o trabalho da vila. As pessoas contribuem com o que elas podem. Aqueles que conseguem trabalhar com metal ou madeira o fazem para construir ou vender. Aqueles que conseguem lutar, trabalham protegendo a vila, ou caçam. Nós achamos uso para qualquer talento.”
“Eu passei minha vida passando maquiagem em nobres enquanto eles se preparavam para festas,” disse Cora.
Vincente deu de ombros. “Bom, tenho certeza que você encontrará alguma coisa. E temos celebrações aqui também. Você encontrará um jeito de se encaixar aqui”.
“E se a gente quiser partir?” perguntou Cora.
Emeline olhou à sua volta. “Por que alguém iria querer partir? Você não quer, não é?”
Ela fez o impensável então, e mergulhou na mente de sua amiga sem pedir permissão. Ela conseguia sentir suas dúvidas lá, mas também a esperança de que ficaria tudo bem. Cora queria conseguir ficar. Ela só não queria se sentir como um animal engaiolado. Ela não queria estar presa novamente. Emeline conseguia entender isso, e relaxou. Cora iria ficar.
“Eu não,” disse Cora, “mas… eu preciso saber que isso tudo não é um truque, ou um tipo de prisão. Eu preciso saber que eu não sou uma contratada de novo, mesmo que não me chamem disso.
“Você não é,” disse Vincente. “Nós esperamos que você fique, mas se você decidir partir, nós só pedimos que mantenha nossos segredos. Esses segredos protegem Stonehome, mais do que a névoa, mais do que nossos guerreiros. Agora, vou deixa-las se familiarizarem. Quando estiverem prontas, venham para a casa redonda no centro da vila. Flora cuida da cantina lá, e teremos comida para vocês.”
Ele partiu, e agora Emeline e Cora podiam checar sua casa nova.
“É pequena,” disse Emeline. “Eu sei que você costumava morar em um palácio.”
“Eu costumava morar em qualquer canto de um palácio que eu pudesse encontrar para dormir,” respondeu Cora. “Comparado com uma dispensa ou qualquer canto vazio, isso é enorme. Apesar de que precisa de uns consertos.”
“Nós podemos consertar,” disse Emeline, já olhando a sua volta para as possibilidades. “Nós atravessamos metade do reino. Nós podemos fazer um chalé melhor para morarmos.”
“Você acha que Kate ou Sophia algum dia virão pra cá?” perguntou Cora.
Emeline estava se perguntando a mesma coisa. “Eu acho que Sophia estará ocupada em Ishjemme,” ela disse. “Com sorte, ela realmente encontrou sua família.”
“E você encontrou a sua, mais ou menos,” disse Cora.
Isso era verdade. As pessoas lá fora talvez não fossem seus familiares de verdade, mas pareciam ser. Eles haviam sentido o mesmo ódio do mundo, a mesma necessidade de esconder-se. E agora, eles estavam lá um para o outro. Era o mais próximo de uma família que Emeline havia encontrado.
Isso fazia de Cora família também. Emeline não queria que ela se esquecesse disso.
Emeline a abraçou. “Essa pode ser uma família para nós duas, eu acredito. É um lugar em que nós duas seremos livres. É um lugar em que nós duas estaremos seguras.”
“Eu gosto da ideia de estar segura,” disse Cora.
“Eu gosto da ideia de não ter mais que atravessar o reino inteiro procurando esse lugar,” respondeu Emeline. Ela estava farta de viajar a essa altura. Ela olhou para cima. “Nós temos um teto.”
Depois de tanto tempo viajando, até isso parecia um luxo.
“Nós temos um teto,” concordou Cora. “E uma família.”
Parecia estranho poder dizer isso depois de tanto tempo. Era suficiente. Mais do que suficiente.
CAPÍTULO QUATRO
A Viúva Rainha Maria da Casa de Flamberg estava sentada no seu saguão de entrada, tentando com dificuldade conter a fúria que ameaçava consumi-la. Fúria pela vergonha dos últimos dias, fúria pelo modo que seu corpo a traía, tossindo sangue em um lenço de renda. Acima de tudo, fúria por filhos que não faziam o que ela havia ordenado.
“Príncipe Rupert, sua majestade,” anunciou um criado, enquanto seu filho mais velho adentrava o saguão de entrada, olhando para todos como se esperando elogios por tudo que havia feito.
“Parabenizando-me pela minha vitória, Mãe?” perguntou Rupert.
A Viúva adotou seu tom de voz mais seco. Era a única coisa que a impedia de gritar nesse momento. “É costumeiro curvar-se em reverência.”
Isso foi o suficiente para que Rupert parasse de repente, encarando-a com um misto de surpresa e raiva antes de tentar uma breve reverência. Bom, que ele se lembre quem é que manda aqui. Ele parecia ter se esquecido completamente nos últimos dias.
“Então, você quer que eu o parabenize, é isso?” perguntou a Viúva.
“Eu ganhei!” insistiu Rupert. “Eu fiz o ataque recuar. Eu salvei o reino.”
Ele fez parecer como se fosse um cavaleiro voltando de uma grande missão dos velhos tempos. Bem, aqueles tempos já haviam se passado.
“Seguindo o seu próprio plano irresponsável ao invés do que havíamos combinado,” disse a Viúva.
“Funcionou!”
A Viúva esforçou-se para conter seu humor, pelo menos por enquanto. Embora estivesse cada vez mais difícil.
“E você acha que a estratégia que eu havia escolhido não teria funcionado?” ela reivindicou. “Você acha que eles não teriam se rompido contra nossas defesas? Você acha que eu deveria estar orgulhosa do massacre que você causou?”
“Um massacre dos inimigos, e daqueles que não queria lutar,” argumentou Rupert. “Você acha que eu não ouvi histórias sobre as coisas que você já fez, Mãe? Histórias sobre as matanças dos nobres que apoiavam os Danses? Do seu acordo que permitia que a Igreja da Deusa Mascarada matasse qualquer um que eles julgassem maus?”
Ela não deixaria seu filho comparar essas coisas. Ela não discutiria sobre as duras necessidades do passado com um garoto que não havia sido mais que um bebê de colo durante a mais recente delas.
“Era diferente,” ela disse. “Nós não tínhamos opções melhores.”
“Nós não tínhamos opções melhores aqui,” retrucou Rupert.
“Nós tínhamos uma opção que não envolvia o massacre do nosso povo,” revidou a Viúva, com a mesma exaltação em seu tom. “Que não envolvia a destruição das terras férteis mais valiosas do reino. Você fez o Novo Exército recuar, mas o nosso plano poderia tê-los destruído.”
“O plano de Sebastian era tolo, como você teria visto se não fosse tão cega a seus defeitos.”
O que levou a Viúva à segunda razão para sua raiva. A maior delas, e a que ela estava segurando só porque ela não confiava em si mesma para não explodir de raiva.
“Onde está seu irmão, Rupert?” ela perguntou.
Ele tentou bancar o inocente. Ele deveria saber a esse ponto que isso não funcionaria com ela.
“Como eu poderia saber, Mãe?”
“Rupert, Sebastian foi visto pela última vez nas docas, tentando pegar um barco para Ishjemme. Você chegou pessoalmente para busca-lo. Você acha que eu não tenho espiões?”
Ela o observou tentando decidir o que responder. Ele fazia isso desde que era menino, tentava achar a fórmula de palavras que o permitiria trapacear o mundo do jeito que ele queria.
“Sebastian está em um lugar seguro,” disse Rupert.
“O que significa que você o emprisionou, seu próprio irmão. Você não tem o direito de fazer isso, Rupert.” Um ataque de tosse roubou um pouco do ímpeto de suas palavras. Ela ignorou o sangue fresco.
“Eu imaginaria que você teria ficado feliz, Mãe,” disse ele. “Ele estava, afinal, tentando fugir do reino depois de acabar com o casamento que você arranjou.”
Isso era verdade, mas não mudava nada. “Se eu quisesse impedir Sebastian, eu teria ordenado,” disse ela. “Você o soltará imediatamente.”
“Como você diz, Mãe,” disse Rupert, e novamente a Viúva sentiu que ele não estava sendo nada sincero.
“Rupert, deixa eu ser bem clara. Suas ações hoje colocaram todos nós em grande perigo. Dando ordens ao exército conforme a sua vontade? Emprisionando o herdeiro ao trono sem autoridade? Como você acha que isso vai parecer na Assembleia dos Nobres?”
“Que se danem eles!” disse Rupert, as palavras explodindo. “Eu tenho nobres suficientes para isso.”
“Você não pode arcar com isso,” disse a Viúva. “As guerras civis nos ensinaram isso. Nós precisamos trabalhar com eles. E o fato de você falar como se fosse dono de uma porção deles me preocupa, Rupert. Você precisa aprender seu lugar.”
Ela conseguia ver sua raiva agora, não mais disfarçada como antes.
“Meu lugar é como seu herdeiro,” ele disse.
“O lugar de Sebastian é como meu herdeiro,” a Viúva respondeu de volta. “O seu… o território das montanhas precisa de um governador para limitar seus assaltos ao sul. Talvez a vida com pastores e fazendeiros te ensine humildade. Ou talvez não, e pelo menos você estará longe o suficiente daqui para que eu esqueça da minha raiva por você.”
“Você não pode—”
“Eu posso,” a Viúva retrucou. “E só por discutir, não será o território das montanhas, e você não será um governador. Você irá para as Colônias Próximas, onde você será um assistente do meu emissário lá. Ele me enviará relatórios constantes sobre você, e você não retornará enquanto eu não o julgar pronto.”
“Mãe…” começou a falar Rupert.
A Viúva o colocou em seu lugar com um olhar. Ela ainda conseguia fazer isso, mesmo se seu corpo estivesse desfalecendo.
“Fale novamente, e você será um empregado nas Colônias Longínquas,” ela estourou. “Agora saia daqui, e eu espero ver Sebastian aqui até o fim do dia. Ele é meu herdeiro, Rupert. Não se esqueça disso.”